sábado, 25 de julho de 2015

Introdução House Tremere

O PROGRESSO DE UM INTRUSO

Quando a porta secreta se fechou atrás de si, Bogdan percebeu que não poderia seguir em frente. Seu corpo não mais o obedecia. Viu como seus dedos se contraíam e sentiu gelar o sangue inerte em suas veias. Passado um instante, Bogdan soube o que era aquela sensação por mais improvável que pudesse parecer: era terror. Isso não era de se esperar. Bogdan era tido como alguém que não conhecia o medo, assim era como o conheciam todos os seus irmãos. Fora ele quem havia assombrado a todos ao adentrar em uma fogueira para recuperar o elmo de combate de seu senhor. Bogdan desacatou os Tzimisce quando estes tentaram submetê-lo. Nada do que puderam fazer a seu corpo conseguira forçá-lo a trair os segredos de seus irmãos. Ele era Bogdan, o indomável. Era o único a quem se poderia confiar para em caso de captura, não revelar absolutamente nada. Fora ele quem se manteve de pé sozinho na neve, diante do príncipe lupino para exigir-lhe seu amuleto. Bogdan levantou a bolsa de couro contendo o amuleto capaz de neutralizar barreiras e abrir fechaduras. Eram os malditos Tremere que deveriam sentir medo – dele. Bogdan esperou, e seu sangue se descongelou. Tentou mover os dedos e descobriu que era possível. Fechou os olhos por um instante, e depois entrou nas profundezas das câmaras secretas.


Se Colga se encontrava em algum canto daquele edifício frio sacudido por ventos, seria ali, nas câmaras secretas aonde somente os Cainitas Tremere se aventuravam. Já há meses ninguém recebia notícias de Colga. Sem dúvida havia sido descoberto pelo clã ao qual fingiu ser leal por tanto tempo. Bogdan não gostava de muitos Cainitas, inclusive alguns de seus companheiros de clã, porém sentia certa afeição por Colga, nobre e amante da natureza.

Bogdan passou muitas semanas dentro de Ceoris, disfarçado de criado de um dos magos mortais. Como era necessário, procurava não chamar a atenção. Havia prestado atenção nas fofocas dos servos. Ele se insinuou para os aprendizes mortais e evitou os cainitas entre eles. Seu suposto senhor não sabia nada do mundo dos Cainitas, o que para Bogdan parecia divertido uma vez que passou séculos ouvindo falar do grande poder daqueles magos, que podiam fazer com que os bosques caminhassem e que castelos tombassem com um simples gesto. Porém eram incapazes de ver que Usurpadores caminhavam entre eles.

Um tinido ecoou pelas escadas a sua frente, indo em sua direção. Bogdan se abaixou e depois se encolheu contra a parede de pedra, sentindo a umidade através de sua túnica de lã. Se alguém estivesse subindo pelas escadas, ele não teria nenhuma esperança de escapar.

            Permaneceu imóvel por um tempo, porém não mais escutou ruídos. Apressou-se a descer o resto dos degraus até chegar ao corredor na parte de baixo. Não lhe pareceu mais grandioso do que os anteriores da parte de cima. Várias portas o aguardavam. Ainda que já estivesse familiarizado com as áreas públicas da capela, nunca havia cruzado a porta secreta e desconhecia por completo a extensão daquelas câmaras ocultas. Não havia outra opção a não ser abrir as portas aleatoriamente até encontrar as celas onde os prisioneiros eram mantidos. Tinham que estar nas partes secretas, já que os magos mortais juravam que Ceoris não mantinha nenhum prisioneiro.

            Bogdan voltou a se arrepiar ao escutar um ruído procedente da porta mais próxima. A porta era robusta e reforçada com ferro. Ele estava confiante de que poderia cuidadosamente percorrer toda a extensão do corredor sem alarmar quem quer que estivesse fazendo os ruídos do lado de dentro da sala. Não acreditava que as celas estivessem entre as primeiras salas que um intruso encontraria. Caminhou com cuidado pelo chão de pedra, sem fazer um único barulho, até finalmente dobrar numa curva e se perceber num segundo corredor, também com portas de metal enfileiradas. Agora sem escutar nenhum som, tomou coragem para tentar abrir uma das portas. Todos os seus esforços teriam sido em vão se aquelas portas estivessem bem trancadas. Mas a porta emitiu um rangido suave quando a empurrou com o ombro, e se abriu. Levantou seu lampião para iluminar o quarto escuro. Dentro havia gárgulas. Ele se preparou para um intenso e terrível combate.


            Mas – exalou forçadamente um curto suspiro de alívio, o primeiro em décadas – as gárgulas permaneceram imóveis. Estavam mortas, empalhadas e montadas como troféus de um caçador. Cada uma delas exibia uma desconcertante malformação que a distinguia dos espécimes animados que Bogdan havia visto nas guaritas da parte exterior da capela. Foi então que Bogdan escutou o som de arranhões e de algo se movendo em outra parte da sala. Junto a duas paredes haviam jaulas agrupadas, a maioria muito pequena para abrigar sequer uma lebre. Bogdan deu uma espiada numa das jaulas e descobriu feras compostas de pedaços que não as pertenciam. Um rato com as transparentes asas de uma libélula. Um retorcido ser semelhante a um verme, maior que um gato, e que se impulsionava graças a vários pares de línguas humanas. Uma pomba cujo peito vertia pus com o lento palpitar do que só poderia ser as partes íntimas de uma mulher. Bogdan havia visto muitas das diversas atrocidades cometidas pelos Tzimisce com suas vítimas cujas carnes foram alteradas, as quais, num primeiro olhar, guardavam certa semelhança com aquelas criaturas. Mas os seres nas jaulas eram de alguma forma diferentes, ainda que Bogdan não encontrasse palavras para expressar a razão. Eles eram retalhos mal costurados, frutos de uma loucura mais fria do que a dos Tzimisce. Colga saberia a explicação. Quando o encontrasse, tudo se esclareceria. Ele tinha que sair dali e procurar Colga, já que não acreditava vir a encontrar as chaves de nenhuma cela naquele local, entretanto não conseguia resistir em espiar as jaulas. Ele disse a si mesmo que seus irmãos gostariam de conhecer aos segredos daquela câmara.

            Uma das jaulas estava coberta por um pano sujo de ferrugem, Bogdan puxou-o, e logo depois se lamentou por sua falta de cautela. A besta do interior era formada pelas traseiras de dois lobos, onde cada par de patas juntava-se no meio para compor um ser sem cabeça. Dúzias de espinhos afiados apareceram de seu torso rosado. Quando estes espinhos se abriram, Bogdan viu que na realidade eram os bicos de incontáveis aves. Os pássaros começaram a gorjear. Bogdan sentiu o impulso de fechar a porta e assegurar-se de que ninguém viesse a ouvir o estrondo dos chiados, porém havia algo naquele ruído que o manteve paralisado no mesmo lugar. Em meio aquela ensurdecedora e cacofônica canção, não tardou para que conseguisse distinguir palavras. Palavras que falavam em seu dialeto natal. Então escutou os nomes de sua mãe, seu pai e de seus filhos mortos há muito tempo. Não pôde conter os calafrios. Em seguida as palavras mudaram e passaram a enumerar todas as ocasiões em que Bogdan havia sido ameaçado, espancado ou torturado. Aquelas vozes deram nome ao terror que dizia a si próprio jamais ter sentido. Demonstravam que sua impavidez era mentira, enumeravam a gritos os horrores mais profundos que enterrou dentro de si. Os gritos da criatura puxaram aqueles medos de seu interior e o envolveram, para que a besta o dominasse.

*                         *                          *


Bogdan acordou e não estranhou descobrir estar atado a um banco numa cela mal iluminada. Tinha os braços presos nas costas e suas pernas amarradas nas da cadeira. Ele testou a força dos laços quando foi zombeteiramente repreendido pela insinuante voz de uma mulher que adentrava a câmara silenciosamente.

A desconhecida aproximou-se.

            Bogdan viu sua beleza: um rosto de linhas perfeitas, uma pele que absorvia a luz. O corte de sua túnica imaculada recordava-lhe vagamente o hábito de uma freira. Depositou sobre ele um olhar fulminante que Bogdan já havia visto antes em outros captores. Todos acreditavam que com olhares fulminantes e algumas ameaças eloqüentes poderiam assustá-lo a ponto de trair seus irmãos.

            “Eu sou Mendacamina. Vou descobrir quem o enviou e o porquê.”

            A princípio, todos se mostravam confiantes.

            “Não posso prometer que vai sair daqui com vida” – continuou a mulher – “ambos sabemos que essa promessa não seria mais do que uma mentira absurda, contudo você pode evitar passar por dores.”

            Bogdan estava decidido a guardar silêncio. Havia descoberto anteriormente que era a melhor forma de irritá-los.

            “Você de alguma forma descobriu como proteger sua mente da leitura mental” – gracejou a mulher. Seus olhos brilhavam com a luz do lampião quando inclinou-se em sua direção – “Porém sei que você se chama Bogdan, que veio resgatar alguém e que acredita estar imune aos meus doces cuidados. Mas isso porque você é um homem sem imaginação. Sua mente não é capaz de conceber as agonias que posso produzir. O que os Tzimisce fizeram com você - em comparação, não será mais que uma alfinetada.”

            Bogdan surpreendeu-se com a profundidade com que aquela mulher conseguiu entrar em sua mente, mas o que ela queria descobrir estava bem protegido, oculto por muitas camadas de força de vontade e concentração.

            Ela acariciou-lhe o rosto com seus dedos de pele seca. “Você orgulha-se de não conhecer o medo. Mas o Chitterer derrubou as muralhas de sua coragem assim como as trombetas hebraicas derrubaram Jericó.”

            Bogdan decidiu ser conveniente formular algumas perguntas. Mesmo que tivesse falhado em encontrar Colga, ao menos poderia compilar informações úteis para levar a seus irmãos, após sua inevitável fuga. “O que era aquela besta?” ele perguntou.

            Mendacamina esboçou um sorriso e voltou a posição ereta normal “O hobby de uma de minhas colegas. Seus perpétuos experimentos com a natureza sempre se mostram interessantes e, em ocasiões, resultam em algo útil. Eu descobri que o Chitterer criado por ela funciona maravilhosamente para enfraquecer mentes demasiadamente orgulhosas.”

            Bogdan escutou o som de objetos sendo movidos atrás de si. Se esticou para girar a cabeça e conseguir ver o que era, sem êxito. Pelos sons julgou haver mais 4 pessoas no local. Eles grunhiam como se carregassem um objeto pesado. Logo se produziu um rangido, algo grande e metálico estava sendo empurrado pelo chão de pedra da cela.

            “Conduziu-me a ira do sangue, é verdade, porém já não estou em frenesi e, seja qual for o aparato de tortura que você está preparando, aviso que não conseguirá obrigar-me a falar.”

            Os criados de Mendacamina manobraram o aparato até o alcance da vista de Bogdan. Era uma grande caixa, forjada em bronze na qual foram inscritos símbolos de feitiçaria. Uma roda do tamanho de um escudo sobressaia a alguns centímetros da caixa. Mendacamina aproximou-se da caixa e dela extraiu um tubo longo, também de bronze, composto por muitas partes articuladas, ligadas umas as outras. Bogdan sentiu mãos ásperas segurando seu rosto e girando-lhe o pescoço para o lado. Escutou um cântico; havia mais pessoas na sala, além do limite do círculo iluminado pelo lampião. Estavam fazendo magia. Bogdan sentiu algo úmido sendo aplicado em sua têmpora. Seus olhos lacrimejaram frente a dor que irradiava daquela área. Bogdan sentiu o cheiro de sua carne derretendo.

            “Você deseja obter informação para levar de volta a seus irmãos. Embora nunca mais voltará a vê-los, ainda assim serei sua tutora. O tubo que tenho em minhas mãos é uma Cannula, e isso – “Ela mostra uma afiada lâmina triangular na extremidade do tubo – chama-se trocar, combinados, permitem-me aspirar os fluidos de alguém.  O dispositivo maior – ela aponta para a caixa grande – “processa sua mente até que se transforme num fluido pastoso”. Ela sinaliza com um gesto para que se acendam mais luminárias, ordem que seus criados imediatamente obedecem. A nova luz revela uma mesa, sobre ela descansava um objeto redondo, oculto debaixo de um pano de linho tingido. “Como pode ver, um segundo tubo sai do aparato e vai alimentar alguém que quero que você conheça, Bodgan.” – Ela retira rapidamente o pano que cobria o objeto, e uma cabeça de bronze de noventa centímetros é revelada, dotada de mandíbulas articuladas e olhos móveis de mármore encerrados em dois orbes de cristal cheios de líquido. O rosto parecia sorrir para Bogdan – “Esse é Paracelsus. Ele está ansioso para saborear o conteúdo de seu cérebro. Tal como disse, Bogdan, não posso te obrigar a falar, e é verdade. Mas Paracelsus falará por você.


E deu um passo para frente, com o Trocar em mãos, prestes a cravá-lo na têmpora de Bogdan.

Um comentário:

Unknown disse...

Tzimeces se sentiram superados

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