terça-feira, 4 de dezembro de 2012

O dia em que devoramos Medusa - Oficial




Um conto bacana do livro Dark Tyrants




Traduzido por Acodesh

Do livro Dark Tyrants, págs 83 a 107
(É impressão minha ou pouquíssima gente tem esse livro?)

Devorando a Medusa

            Estava frio, na noite em que devoramos a Medusa.
            Do lado de fora da taverna, as poucas oliveiras que subiam pela parede rochosa de Santorini, se curvavam e se partiam ao meio com os ventos da intensa chuva. No porto de Akrotini, os barcos de pesca eram sacodidos pelas ondas na baía tempestuosa.
            Por outro lado, dentro da caverna, onde Aguirre havia sentado no lado da mesa oposto ao meu, tamborilando os dedos numa poça de cerveja laranja que os gregos davam o nome de retsina, estava quente. O calor vinha de uma lareira a uma distância aproximada de 5 metros de nós, no centro da taverna. Um braseiro de carvão emitia uma detestável fumaça negra numa chaminé de couro pendurada logo acima.
            Eu não estava gostando do fogo, e sabia que Aguirre também não estava. Mas ele insistiu para que sentássemos próximo a ele. Aguirre era assim: luta , teste, busca por fraquezas, nele mesmo se necessário e em outros se possível. Eu aprendi a esperar dele este tipo de coisa. Afinal, Aguirre era um Lasombra, e eles são um clan que se alimenta da fraqueza com tanta voracidade com o qual os corvos se banqueteiam nos corpos mortos de um campo de batalha.
            E assim era como as coisas sempre funcionavam entre Aguirre e eu. Ele testando, procurando, colocando em prova. E eu em silêncio, esperando de forma estóica. Nunca, jamais mostrando a ele qualquer fraqueza. Aguirre e eu éramos parceiros – e eu confiava nele. Mas confiança com os Lasombra só pode ir até certo ponto antes de se transformar em ingenuidade.
            Eu não era ingênuo. Então sentei à mesa próximo a lareira, e fingia, tal como Aguirre, beber minha retsina. E fingia também, tal como Aguirre, que não me importava com o brilho vermelho do calor que aparecia na nossa pele conforme falávamos, discutindo e planejando.
            Imagino agora que foi o esforço de mentir para Aguirre sobre o fogo, e meu temor, que me fizeram falhar em perceber o Assamita até que fosse quase tarde demais.
            Uma sombra passou sobre o tampo de nossa mesa, e com isso o calor da lareira diminuiu por um instante. Eu olhei na direção oposta ao do rosto pálido e ansioso de Aguirre.
            Um garoto passou por nós e sentou na mesa a 10 pés de distância. Ele tinha cabelos negros, pele pálida, era magro e aparentemente efeminado. Ele parecia um jovem pescador entediado, vindo até a taverna para beber e esperar a tempestade de inverno passar, para enfim poder retornar ao mar com seu barco e suas redes.
            Havia algo no rapaz, algo familiar...
            Subitamente o reconheci. O Assamita. Ele havia me encontrado outra vez. Este Assamita, este assassino não era um desconhecido. Pensei ter tido sucesso em escapar de sua perseguição de 3 noites atrás, tirando-o de meu encalço.
            Obviamente eu estava enganado...
            Ele bocejou e esticou os braços. Seus dentes eram muito, muito brancos.
            "Ela dorme", disse Aguirre, despercebido do perigo que corríamos. “E é por isso que não precisamos ter medo dela”.
            “Aguirre”
            “Ela dorme Rollo! Ela dorme! Do que você tem medo?”
            Virei novamente para Aguirre, mas não estava prestando atenção nele nem no fogo.
            O Assamita obviamente estava disfarçado. Não era tão tolo para se revelar abertamente para dois vampiros mais velhos. Mas eu o havia visto pelo que ele era. Qualquer que fosse seu talento em se disfarçar, meu talento em penetrar em disfarces era obviamente maior.
            Ele não parecia estar carregando armas. Mas isso poderia fazer parte do disfarce, disso eu sabia. Eu me perguntava se ele estava ali como um batedor, me perguntava se havia outros com ele.
            “Não tenho medo de quem dorme” , disse eu para Aguirre. “Tenho medo dele”.
            Já não havia quase nenhuma humanidade em Aguirre – nosso tempo juntos me fez perceber isso – mas ele mantém alguns hábitos de seus dias como mortal.
            E assim ele piscou, como se ainda fosse capaz de sentir surpresa.
            “O pescador?” Ele murmurou. “Um amigo do turco?”
            Fiz um sinal positivo com a cabeça.
            A mão de Aguirre deslizou até sua espada, e a minha fez o mesmo com minha adaga.
            A atenção do garoto agora estava sobre nós, mas precisávamos fazer com que ele chegasse mais perto. Lutar com um Assamita a distância é aprender rapidamente como sofrer a morte final.
            Parecia que era hora para outro dos testes de Aguirre.
            Falei em voz alta: “O Assamita. Aquele de quem Viella bebeu. Seu nome era Ulic, não?”
            Os lábios de Aguirre deixaram seus dentes a mostra. “Não importa qual era o nome do maldito sarraceno. O que importa é como ele berrou enquanto Viella sugava sua alma.”
            Nós rimos um pouco. No canto de minha visão periférica, vi o garoto sentado com a coluna ereta.
            Bom, a maioria dos Assamitas são tão frios em seus corações tal como Aguirre e eu. Mas alguns, como o garoto pescador, são quentes e rápidos quando movidos pelo orgulho, tal como se ainda fossem mortais. O garoto era um Assamita deste tipo. E por isso ele iria morrer.
            Mais pressão. Em breve o garoto não seria mais capaz de suportar. “O turco era um covarde”, eu disse. “Ele não tinha honra, e fedia não é, Aguirre?”
            Os olhos de Aguirre dançavam olhando para mim. “Sim, de fato ele fedia. Estou feliz por ter sido Viella quem se alimentou dele. É adequado que o herege sarraceno caísse para o mais fraco membro de nossa cabala. Ele coçou o nariz com seus dedos e ficou de semblante fechado. “Embora eu deva reconhecer que ela possui o estômago mais forte.”
            O garoto levantou da cadeira.
            Era tempo de dar a Aguirre a abertura para desferir o golpe verbal final. “o turco fedia a quê, Aguirre? Estou tentando me lembrar mas...”
            O garoto estava a 2 pés de distância.
            Aguirre: “Não é óbvio? Ulic o turco, nosso amigo Assamita, fedia a porco!”
            O garoto gritou algo, e uma faca apareceu em sua mão. Atrás dele, mortais se desesperavam, indo para trás, trombando uns nos outros, correndo ao sair da porta da taverna.
            Nós permanecemos. A espada de Aguirre já estava desembainhada. Haviam sombras enroladas como fios da própria noite ao redor de sua espada. Minha adaga também já estava em minha mão.
            O garoto deu um passo para trás, o ódio em seu rosto começou a se dissipar. Ele soube que havia cometido um erro, que o levou até nossa armadilha.
            Hora de se juntar a seu mestre Ulic no inferno”, sorria Aguirre. Ele ergueu sua espada.
            “Parabéns”. Uma voz baixa vindo por trás do Assamita. Uma voz de mulher, doce mas firme, como se tivesse acabado de despertar do sono. Ela circundou a fogueira. Era alta e se portava de forma estranha. Usava uma túnica masculina de algodão marrom no estilo do norte. Seu cabelo era curto e negro, molhado pela chuva. Seus olhos eram verdes ou azuis, era difícil dizer. Sua pele era pálida, manchada de vermelho, surrada pelo vento.
            Por alguma razão o Assamita baixou sua faca.
            A taverna estava vazia na parte de trás do Assamita. Os sons que quebravam o silêncio eram: o crepitar brilhante do carvão na lareira e os ramos de oliveira estalando com o vento.
            “Garota”, eu disse. “Vá embora. Você não sabe o que enfrenta aqui”.
            A garota deu de ombros e olhou para o garoto. Sua face permanecia sem expressão, uma máscara de serenidade, ou indiferença. Ela olhou nos olhos do garoto.
            O expressão do garoto mudou. Lentamente ele levantou sua adaga até a altura de sua garganta. Seus olhos estavam em pânico.
            Ele começou a serrar sua própria garganta com a lâmina. Sangue começou a escorrer.
            “Existem outros!”ele gritou.
            O garoto continuou se cortando. Em pouco tempo os tendões e ligamentos de seu pescoço estavam visíveis. Sua face escureceu quando seu disfarce não se manteve., mas pude ver que ele ainda era um garoto
            “Existem outros”, ele disse engasgado, com o sangue que saía de sua garganta cortada. “Sempre existirão outros!” Em seguida sua garganta se encheu de sangue, e ele já não conseguia falar.
            O garoto ainda levou vários minutos para enfim se matar. Nós permanecemos e assistimos até o fim. Ele perdeu a firmeza e caiu no chão, como um receptáculo de vinho, vazio.
            Aguirre disse: “Ele quase cortou a cabeça fora, estou impressionado”
            Aguirre e eu embainhamos nossas armas, depois nos sentamos.
            O cheiro de sangue do garoto morto era muito forte. Eu ouvi o barulho de alguém engolindo algo no chão. Um som que transmitia ansiedade e cobiça. A garota estava se alimentando.
            Pouco tempo depois, senti  cheiro da chuva, de lã molhada e sangue. A garota estava sentada num dos bancos próximo a mim com suas mãos sobre as minhas, sua pele estava quente. Mas logo foi esfriando, tornando-se tão fria quanto a minha. Sua pele já não tinha rubor. Agora era pálida como mármore ou giz – ou como a carne de um cadáver.
            Em seguida ela riu, com sua risada característica.
            “Viella”, eu disse meneando a cabeça. Ela não mais era a camponesa magricela que havia forçado o Assamita a se matar. Era Viella, o terceiro membro, juntamente comigo e com Aguirre, a formar nossa pequena cabala.
            Mais risadas. “Eu te enganei de novo, Rollo. E a você também Aguirre”.
            Aguirre deu um riso forçado para ela, mostrando suaas presas finas e afiadas. 
         “Eu sabia que era você, Viella. Você não oculta seus olhos direito. Eles mudam entre o verde e o azul.”
            “É por causa da luz da fogueira”, ela resmungou. “Meu disfarce estava perfeito”.
            Aguirre resmungou.
            “Sim”, eu disse. “Seu disface estava perfeito.”
            Sua cabeça estava em meu ombro. “Você é tão gentil Rollo. Si gentili. Você não é como Aguirre”. Ela chegou mais perto e se aninhou. Seu corpo próximo ao meu parecia tão pequeno como o de uma criança.
            “Então por que você ama Aguirre e não a mim? Eu sou um gentleman e ele não é.”
            “Eu amo Aguirre porque ele não é um gentleman.”
            “Não entendi”.
            Um sorriso malicioso. “Ele não é um gentleman, e eu não sou uma lady. Portanto somos perfeitos um para o outro.”
            Eu me perguntava se Viella estava me zombando, e decidi que ela estava.
            Eu era o único do grupo que tinha bom senso.
            Ela riu novamente, beijou meu pescoço. “Meu precioso homem fera loiro. Tão sério”.
            O silêncio imperou. Então, por um curto período e pela última vez, sentamos juntos na taverna: Don Felix Lopes Aguirre de Garabandal, do clan Lasombra, Marchesa Viella Maria Julia di Messina, Seguidora de Set; e o plebeu, eu – Rollo do clan Gangrel.
            “Finalmente Aguirre disse; “Chegou a hora”.
            Nós levantamos da mesa e caminhamos juntos até o lado de fora da taverna vazia e para dentro da noite, Viella próximo a mim, sua mão dentro da minha, tão pequena e frágil como um pássaro recém-nascido. Mas sua pele era fria, na noite em que devoramos Medusa.

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            Foi Kindermass quem nos disse onde encontrar a Medusa. Kindermass era um Nosferatu. Sua feiúra era assustadora, seu conhecimento imenso e sua consciência seguia um único princípio: a conveniente sobrevivência dele mesmo. Nós percebemos que ele era maravilhosamente útil.
            Kindermass vive em Paris, o melhor lugar para alguém como ele, um negociador de conhecimento. Conhecimento não, informação.
            A maioria dos Nosferatu gosta de viver abaixo da superfície, como ratos numa coelheira. Kindermass era diferente. Ele adorava o céu noturno, passava suas horas acordado nos telhados da Île de la Cité.
            Na noite seguinte depois de que devorei o magricela Duque Branco, nós o encontramos aqui, sentado numa gárgula em cima da catedral Notre Dame, ele estava na lateral da gárgula como se fosse uma bolsa de couro, cheia de dinheiro.
            Nós esperamos respeitosamente, como era nosso costume. Finalmente Kindermass falou. Sua voz era comedida e clara, como a de um sacerdote decrevendo os pecados de seu rebanho.
            “Vejo que se banquetearam bem. O Duque foi de seu agrado?”
            “Sim, ele foi.” Eu ainda podia sentir o sangue do Duque em minhas veias. No momento o sentimento me fez querer gritar e pular, partir o mundo em dois.
            “Eu te parabenizo. Minha ajuda foi útil?”
            “Foi. Nós nunca acharíamos o Duque sem a sua ajuda.”
            “Meu pagamento por favor.”
            Me ajoelhei perto dele, e alcancei minha túnica, relutante em dividir meu prêmio. Eu o puxei para fora e o coloquei no telhado.
            “Espero que isto te agrade”.
            O pagamento – um pequeno busto de mármore, com algumas polegadas de altura, de estilo romano ou grego. A cabeça de um garoto: lábios largos, nariz reto, cabelo curto e cacheado. Teria sido o busto do jovem Alexandre. Pertencera ao Duque Branco.
            “Sim”. Kindermass falou com ênfase. Ele se abaixou diante do busto.
            “Sim, me agrada. Muito bem Gangrel. O pagamento foi quitado em 100%”.
            E assim, seu punho direito deformado desceu sobre a cabeça com a força de um golpe de martelo. O busto se partiu em diversas lascas grandes.
            Viella ficou perplexa. “Por que você fez isso Kindermass? A cabeça era belíssima.”
            “Eu odeio coisas belas” , disse Kindermass. “Elas são sempre o produto da violência."
            Viella continuou com desdém: “Então você deve de fato odiar muito a Aguirre e a mim.”
            “Nem um pouco, pequenina. Eu vejo abaixo do que vocês mostram na superfície, e portanto me agrado de ambos.”
            “Basta”, interrompeu Aguirre. “É a minha vez agora de ter um banquete de almas. Me dê um alvo Kindermass. Apenas tenha certeza que ele seja próximo de Caim, e que tenha pouco poder.”
            “Um tipo raro”. Kindermass falava enquanto puxava sua orelha esquerda. E eu poderia jurar que ela havia crescido. “Seria difícil sugerir um nome de imediato”.
            “Muito bem , e por que não devorar você mesmo, Kindermass? Estamos em 3, e você é apenas um. Por que eu não deveria devorá-lo?”
            “Que nojento!” , disse Viella enquanto cobria sua boca.
            Por um momento Kindermass nada fez. Então se levantou e olhou na direção de Aguirre. Um olho era pequeno e negro.  O outro era grande como uma maçã e coberto com um limo branco. Este olho parecia rolar dentro da órbita ocular como se dotado de vida independente.
            Kindermass sorriu. Não foi algo agradável de se ver
            “Você gostaria de tentar, senhor das sombras?”- ele disse. Teste-me então. Me mostre sua força, o poder sobre as trevas que você possui.”
            “Eu estava apenas brincando velhote” , disse Aguirre. Era obviamente uma mentira, e Kindermass sabia disso.
            “Mas eu não estou brincando”. Disse Kindermass, ainda sorrindo.
            Aguirre deu de ombros, desviando o olhar de Kindermass. “Chega, você já se fez entender”.
            Mas Kindermass ainda não havia terminado, não estava satisfeito.
            “Um aviso para você, Lasombra. Se você realizar o rito do amaranto em alguém cuja força de vontade seja maior do que a sua, você pode terminar... digamos que você nunca mais sentirá a dor da solidão. Ou ter a privacidade nos próprios pensamentos. E sim, Lasombra, minha força de vontade é maior do que a sua.”
        “Você diz bobagens, Kindermass” , disse Viella. “Isto é uma mentira dos anciões. Eu já devorei 3 vezes, e ninguém além de mim vive no meu corpo”.
            Kindermass segurou seu nariz, e então ficou olhando para seu dedo. Ele parecia surpreso por não haver nada no dedo. Kindermass piscou para Viella como se tivesse notado sua presença apenas agora.
            “Bobagens, você diz? Uma mentira dos anciões? Eu soube de uma fonte segura de que o próprio Tremere carrega Saulot em sua mente. E que o ancião Salubri as vezes sobrepõe o controle do magus e o faz emitir decretos, os quais o levam a arrependimentos.”
            “Os lábios de Aguirre se franziram. “O que explica, eu imagino, porque Tremere, que na verdade é Saulot, ordenou o extermínio de cada uma das crias de Saulot.”
            Sons sibilantes: Kindermass rindo. “Talvez Saulot não goste mais de suas crias como costumava gostar.”
            Nos nos juntamos a gargalhada. O próprio Kindermass vivia com terror de seu fundador, que desejava matar seus descendentes como uma oferta a Caim. Foi engraçado para Kindermass, pensar que talvez seu clan não fosse o único com esse problema.
            “Diga-nos, qual é a nossa próxima vítima” , disse Aguirre.
            “Eu conheço um adormecido cujo sangue é forte. Mas ela descansa longe daqui, numa ilha próxima as terras dos gregos”.
            “Quão próxima ela é de caim? Qual é o clan dela? Onde precisamente ela descansa?”
            “O rumor é que ela diablerizou a cria de um dos antigos, na trilha da Rosa Negra. Sobre seu clan...” Ele olhou para Viella “Ela é uma dos seus pequenina. Uma Seguidora de Set.”
            “Qual é seu nome?”, disse Viella – aborrecida por não ser sua vez de matar. Inquieta, movia um pé, depois o outro.
            “Seu nome verdadeiro eu não sei. Mas eu ouvi que seu clan a considera uma renegada. Os seguidores de Set apenas a chamam de “Medusa”. Uma referência óbvia ao górgona com cabelos de serpente da mitologia grega. Um nome que não revela nada, uma vez que se aplica a qualquer setita fêmea”.
            Viella ficou paralisada.
            Kindermass não deixou perceptível se havia notado. “Medusa fez uma coisa que é considerado insultante aos sacerdotes do Grande Templo. Ela foi forçada a fugir da África e procurar abrigo debaixo do solo numa terra distante.”
            Aguirre ia começar a falar, mas Viella o interrompeu. “Qual foi o crime de Medusa?” , uma voz incisiva, com uma ansiedade que mal cabia no peito.
            Kindermass deu risadas. “Seu crime? Foi um  crime muito sério para um setita. Eu acredito que ela numa ocasião praticou um ato de bondade.”
            Aguirre e eu gargalhamos, Viella não disse nada.
            Eu disse: “Você conhece esta Medusa, Viella?”
            “Tenho razões para acreditar que Medusa é alguém que me ofendeu no passado” , foi tudo que ela disse.
            Aguirre fez sinal positivo com a cabeça. “Se Medusa praticou um ato de bondade, entendo como pode ter te ofendido, Viella”.
            Viella pareceu não ter ouvido. Ela deu as costas para Aguirre.
            Kindermass fechou os olhos, começou a se balançar. Ele estava prestes a nos dar um sermão.
            “Ouçam e aprendam, crianças do Amaranto. Eis a forma como vocês encontrarão a Adormecida.”
            Sua voz se tornou pedagógica e monótona. “Ao sul da terra dos gregos, no mar chamado Aegean, há uma ilha chamada Santorini, uma ilha que já foi um poderoso vulcão. Nesta ilha há uma caverna, e na entrada desta caverna há um ídolo. É nesta ilha, dentro desta caverna, que vocês encontrarão o que procuram: o refúgio da Medusa.”
            Viella permaneceu por perto, sua face séria, distante, fechada a minha inspeção. Ela não parecia estar ouvindo Kindermass conforme este dava as explicações, mas eu não tinha certeza.
            Ela estava olhando para sudeste, na direção da Grécia.
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            Nós andamos pela ilha erodida pelo vento. A chuva havia parado, mas o vento ainda era forte. A rocha sob nossos pés tinha um tom marrom quase preto. Em nossa direita declives sem vegetação se precipitavam até a baía abaixo. Na nossa frente a ilha se estreitava apontando para o Sul de Creta , e depois para o Egito. Kindermass nos disse que a caverna com o ídolo estaria aqui na extremidade do estreitamento.
            Obviamente estávamos sozinhos. Nenhum grego viajaria pelos atalhos sem árvores do coraçao de Santorini enquanto pudesse perfeitamente dormir sob um teto, aquecido por sua lareira. Atrás e abaixo de nós, abraçando a baía, estava a cidade de Akrotini, suas construções baixas e sem vida debaixo da lua encoberta por nuvens.
            “Ainda tenho fome”, disse Viella olhando para a cidade. “A maior parte do sangue do garoto foi desperdiçado, derramado no chão antes que eu pudesse bebê-lo.”
            Aguirre resmungou: “Você deveria ter pensado em se alimentar de novo antes de termos saído. Agora não temos tempo. Ainda não encontramos Medusa. Precisamos nos apressar.
            “Não seja tão impaciente, Aguirre”, eu disse. “Kindermass nos disse para procurarmos pelo ídolo e pela caverna, e ele nunca se enganou antes.”
            “Um ídolo!” zombou Viella. “Como ela...” Sua voz desapareceu.
            “Sim?” , disse Aguirre maliciosamente. “Como ela o quê?”
            Viella não respondeu. Por um tempo caminhamos em silêncio.
            Finalmente ela quebrou o silêncio. “Eu quis apenas dizer que é característico da personalidade de Medusa marcar seu lugar de descanso com um símbolo religioso.”
            Aguirre piscou para mim. “Símbolos religioso te ofendem, Viella? Eu achava que setitas eram muito religiosos. De sua própria maneira é claro.”
            Para minha surpresa, Viella não se irritou com o tom zombador de Aguirre. “Você está certo Aguirre. Nós setitas somos religiosos. E não, eu não me ofendo pelo fato de Medusa usar um ídolo para marcar seu lugar de descanso. Eu me incomodo pelo fato de que ela tenha escolhido fazer qualquer marca em seu lugar de repouco.”
            “Eu não entendo”.
            “Não é óbvio? Ela deseja tornar sua presença conhecida por todos, mesmo que permaneça sozinha abaixo da terra. Ela gosta de atenção do mesmo modo que gostamos de sangue.”
            “Eu não tenho pena da Medusa. Ela de considerar seu sono muito solitário. Obviamente isso irá mudar em breve.”
            “O ídolo” , eu o vejo.
            Havia uma pequena elevação de rocha vulcânica a nossa frente. No centro da elevação, erguido como uma tumba, havia uma forma esguia e espiralada: o ídolo. Mesmo no frio, filamentos de vapor se erguiam da elevação. Parecia que o vulcão adormecido no coração de Santorini ainda estava ativo.
            “Sim”, disse Viella. “Aquele é o ídolo que marca o refúgio da Medusa. Eu...nós.. o encontramos”.
            Nós nos apressamos, excitados pela confirmação de nossos desejos, vencendo facilmente a elevação. Sua superfície era de rocha negra lisa onde haviam diversas aberturas. Das aberturas saíam vapores, amarelos, sulfurosos.
            Uma grama fina e quebradiça se partia sob nossos pés e era esmagada conforme circundávamos o ídolo cautelosamente.
            O chão debaixo da grama era quente o bastante a tornar doloroso ficar de pé muito tempo no mesmo lugar. O ar a nosso redor era ácido, e quente como numa noite de verão.
            Aguirre e eu demos uma pausa na exploração das proximidades e começamos a olhar para o ídolo. Era uma mulher, alta e voluptuosa, sua face desgastada por anos de vento e chuva. Ela ficava numa grande base circular, seus braços para cima, seus seios revelados por um vestido que se dividia abrindo-se na parte da frente e de trás. Em cada uma das mãos da mulher havia uma cobra. Algo circulava seu delicado pescoço branco.
            “Um colar, imagino” , disse Aguirre. “Este ídolo foi entalhado pelos antigos minóicos, ou assim Kindermass disse. Ele também disse que eles vestiam colares como esse.”
            Eu meneei a cabeça. “Pode ser que seja um colar. A erosão me dificulta afirmar. Mas acho que é uma serpente. Uma serpente agarrando sua cauda com o boca.”
            “Ou engolindo a si mesma”, disse Aguirre.
            O que você acha desse calor? Viella disse para mim. “Me lembra do Vesúvio quando ruge em seu sono.”
            Aguirre a censurou: “Você não ouviu Kindermass Viella? Esta ilha é o resultado de um vulcão que entrou em erupção há muito tempo. Ele é um primo do Vesúvio.”
            Olhei para trás, para o caminho do qual viemos, para as luzes de Akrotini, na distante baía. Abraçando a baía estava Santorini, e movendo-se em sua superfície estavam as sombras das nuvens trazidas pelo vento, e algo mais.
            “Aguirre, Viella. Fiquem quietos”. Meus companheiros se aproximaram de mim.
            “Atrás de nós”, eu disse. “Movimento. Não, já se foi”.
            “Não é nada” , disse Viella. “Apenas sombras”.
            “Talvez não” , disse Aguirre. “Os olhos de Rollo são apurados. Podemos ter mais amigos do turco atrás de nós. Vamos entrar no refúgio da Medusa e terminar isto rapidamente”. Ele sorriu.  “Mas primeiro...”
            Ele deixou seus braços caírem pelo lado, ficando imóvel como uma estátua. Em seguida fechou seus olhos e começou a cantar um cantochão monótono: The lady of Amaranth, the Black Rose.

            Ó Criador, Caim de Nod
            Hoje, a noite vai me trazer mais para perto de ti
            Louvado seja o Amaranto eterno
            Cuja flor negra como a noite nunca desbota ou enfraquece
            Sempre poderei beber em seu banquete sombrio

            Ele obviamente tinha o direito de cantar a música. Era sua vez afinal. Eu havia devorado nossa última vítima, o Toreador que batizamos de Duque magricela. Antes disso foi Viella que se banqueteou no sangue do Assamita turco Ulic, que tarde demais tentou se matar para impedí-la.
            Agora era a vez de Aguirre. Era com isso que havíamos concordado.
            Achei ter ouvido Viella falar. Me virei para ela e a vi olhando fixamente para o ídolo. Seus lábios se moveram. Mas ela fez muito pouco ruído para que eu pudesse ouvir o que dizia.
            “Medusa, você é minha” , ela estava sussurrando. Minha, minha , minha...

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            Quando Aguirre e eu estávamos em Paris, logo após Kindermass nos ter dito onde encontrar A Medusa – havíamos nos alimentado de duas pessoas da cidade, agora completamente sem sangue...
            “Então Viella conhece a setita” , eu disse . “De onde, eu me pergunto”.
            “Talvez a Medusa seja a senhora de Viella”
            “Então por que ela concordaria a nos ajudar a devorá-la?”
            “Acho que nossa pequena setita se sente abandonada” – Risos
            “Isso não faz sentido para mim Aguirre. O Amaranto não é cura para rejeição.”
            “Mas serve perfeitamente como vingança, não?”
            Meneei minha cabeça “Não entendo Viella e nem o seu clan”
            Risadas de Aguirre “Eles são de fato estranhos. Imagine, um ato de bondade sendo considerado um crime! Como eles podem não percebem que o único crime real é a fraqueza?”
            “Lembre-se que eles desejam criar mais corrupção. Esta deve ser a razão.”
            A voz de Aguirre zombeteira: “Mais corrupção? Como se isso fosse possível nesse mundo”.
            “Tive que concordar com ele. “Tem razão. Os setitas colecionam pedrinhas sobre uma montanha”
            “E então querem enaltecimento por suas grandes criações! Bando de imbecis.”
            O silêncio seguinte foi quebrado pelo som do arranhar de ratos nas trevas.
            Aguirre, com uma risada tomando conta de sua voz: “Você sabe o que Viella é?”
            Eu já podia imaginar o que ele ia dizer.
            “Uma santa”, ele disse. “Nossa pequena setita é uma santa da corrupção! Tão dedicada! Consegue imaginá-la, comparecendo a massas de cobras no seu templo de cobra, orando a seu pai cobra para perdoá-la por seu pequenos pecados de cobra! Mea culpa, mea culpa, mea máxima culpa....hoje eu dei uma pão a um mendigo.”
            O sangue de minha última vítima junto com o sangue do Duque estava me fazendo sentir bêbado. “As vezes eu acho que dentro de cada setita há um cristão esperando para desabrochar.”
            “Eu te digo, Rollo. Que o filho do carpinteiro contribuiu mais para a corrupção do mundo do que todos os setitas que já viveram. Apenas o imagine pendurado lá, e vermes saindo de seus ferimentos. De fato um odor de santidade.”
            Eu franzi as sobrancelhas. “Odin também ficou pendurado, Aguirre.”
            “Ah mas Ele não subiu aos céus fedendo, não é?”
            Ratos estavam subindo em meus pés. Sons de algo sendo roído.
            A voz de Aguirre imersa em zombaria: “Acabei de pensar em algo, Rollo. Se é verdade que dentro de cada setita há um cristão esperando para desabrochar, então dentro de cada cristão deve haver...”
            Dei um sorriso forçado. “Um Seguidor de Set esperando para desabrochar”
            “Então os setitas estão certos! Ainda há os que precisam ser corrompidos! De fato há trabalho para eles.”
            Nossa zombaria não tinha limites.

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            Nós viajamos para Santorini separadamente. Viella normalmente viajava com Aguirre, mas insistia desta vez em ir para o sul e para o leste sozinha. Depois de diversas semanas, finalmente encontrei Aguirre na taverna da cidade de Akrotini, não muito distante do refúgio da Medusa. Três noites antes em Thessalônica, encontrei pela primeira vez o Assamita que me persegue, buscando vingança relativa a morte de Ulic, o turco. Achei ter me evadido de sua perseguição sem muita dificuldade. Poucas noites depois eu estava na taverna, esperando Aguirre e Viella.
            Aguirre entrou primeiro, parecia estar nervoso. Disse ainda antes de se sentar:   “Ela vai me deixar”.
            Eu já havia ouvido toda esta história antes. “Não, ela nunca irá te deixar. Ela te ama”
            Aguirre não estava prestando atenção. “Pois eu te digo que ela já me deixou. Sinto em meu coração. Encontraremos Medusa apenas para constatar que Viella chegou antes de nós e realizou o rito do amaranto. E quando eu vir que ela me traiu, não haverá nada para mim a não ser cumprimentar o sol.”
            Isto me fez rir. “Aguirre nunca cumprimentaria o sol. Ele é um assassino, um diablerista, um devorador de almas. O sol recusaria sua oferenda e desapareceria do céu. Em seguida surgiria uma noite eterna.”
            Isto o deixou orgulhoso. “Você acha?” Ele perguntou com os olhos brilhando. “Isso seria maravilhoso! Noite eterna. Nunca precisaríamos dormir! Viella e eu poderíamos...”
            Sua voz silenciou,  ele deu um sorriso forçado e estava visivelmente sem graça.
            “Viu?”, eu disse. “Eu te disse que ela nunca te deixaria, e agora você está concordando comigo.”
            Mas Aguirre apenas balançou a cabeça. Eu não o havia convencido nem um pouco. Mas podia ver que ele agora estava refletindo, sua choradeira interrompida pela idéia agradável de um sol que nunca reaparece.
            “Trevas para sempre” , ele disse, com os olhos bem abertos. “Trevas sem fim!”
            Ele forçou um sorriso novamente, e me deu um tapinha no ombro.
            “Bem...” , ele disse. “Algo que vale a pena desejar, não?”
            Aguirre e eu nos apressamos, procurando a abertura da caverna que nos levaria ao subsolo. Viella estava em silêncio, observando próximo ao ídolo. Sua face oval branca iluminada pela luz cinzenta.
            Eu senti uma repentina pressão no ar, e com ela um som que parecia vibrar bem atrás de meus olhos. Permaneceu por um momento e depois desapareceu.
            Viella quebrou o silêncio. “O ídolo não está tão bem ancorado como parece.”
            Ela empurrou a mulher-serpente com uma única mão. Para minha surpresa a estátua se moveu um pouco.
            Aguirre e eu nos aproximamos rapidamente. Nos apoiamos nossos ombros no dorso branco e liso da mulher-serpente e empurramos. Ela tombou facilmente tal como uma árvore que estivesse com as raízes podres. Vi que a base do ídolo havia afundado apenas um palmo no solo.
            Diante de nós, revelado pela queda da mulher-serpente, um buraco sombrio surgiu. Não era tão amplo como a base do ídolo, mas ainda grande o bastante para que mesmo um homem obeso o pudessee transpassar. Vapores surgiram. Tive que desviar meus olhos.
            “Depois de você” , disse para Aguirre.
            Ele ajoelhou próximo ao buraco, virou para mim e sorriu. Levantou a mão e, para minha surpresa, se inclinou sobre ele. “Em nome das Trevas e da Sombra, e da noite eterna. Amém”.
            Se inclinou mais ainda, e ainda sorrindo se lançou na escuridão.
            “Seu tolo” , disse Viella.
            “Tem razão” , eu disse. “Nós deveríamos nos preocupar mais com eventuais armadilhas”
            “Sim”, disse Viella. “Ele deveria”.
            Esperamos uns momentos, e então da cavidade surgiu a voz jovial de Aguirre.
            “Venham” , ele disse. “Está tudo bem. Desçam. É uma queda curta.”
            Coloquei Viella em meus ombros. Olhei para seu rosto e vi seus olhos já brilhando em vermelho tom de sangue, para poder enxergar o ambiente logo abaixo. Eu sabia que meus olhos haveriam de ficar no mesmo tom que os dela.
            Novamente senti uma pressão no ar, o mesmo som estranho. E novamente ele sumiu tão logo comecei a tentar encontrá-lo.
            “Estou esperando”, disse Viella.
            Dei um passo adiante e para dentro das trevas. Houve um impacto quando meu pé atingiu a superfície de uma rocha plana.   Aguirre tinha razão. Não era uma queda grande.
            Me preparei para descer Viella, mas ela estava impaciente, se debatendo para sair de meus braços como um gato arisco, ou uma criança agitada.
            Olhei ao redor. Estávamos numa câmara cujo teto era baixo e irregular. As paredes que nos circundavam eram de pedra de cor vermelho-escuro – e haviam duas grandes aberturas que ficavam lado a lado. Um estreito feixe de luz lunar descia da abertura acima, cortando as trevas como uma lâmina afiada. O ar estava quente e sulfuroso.
            A câmara estava vazia, exceto por Viella, por mim e por uma massa negra junto a parede, impenetrável mesmo ao brilho de meus olhos vermelhos. Era Aguirre, em sua forma de caça.
            “Uma voz na escuridão: “Bem vindos ao inferno”
            “Guie o caminho, mestre das trevas” , eu disse.
            Lá. Algo. Uma palavra que não conseguia definir.
            “É estranho”, disse Aguirre. “Por um momento pude sentir Medusa me chamando. Consegue entender isso? A tola me chama para ir até ela!
            “Não” , disse Viella com a  voz tremendo e ansiosa. “Você está errado, Aguirre”
            “Como assim?”
            “Ela não chama por você, Lasombra. Chama por mim.”
            “Do que você está falando?”
            Mas não houve tempo para Viella responder, supondo que ela quisesse fazê-lo. Simplesmente não houve tempo.
            A luz da lua que iluminava a câmara desapareceu, bloqueada por algo na abertura. Acima, ecoaram vozes, ríspidas e guturais. Vozes sarracenas.
            “Ulic!” , Eles urravam... “Os vingadores de Ulic chegaram”.
            E de fato, eram quem alegavam ser.

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            Minha visão estava embaçada. Meus punhos golpeavam para frente e pude senti algo cair. Minhas mãos ficaram quentes e molhadas.
            Golpes de facas cruzaram o ar. Dor, queimando em meu estômago, e em minhas costas.
            Gritos de triunfo. Girei o corpo por causa da surpresa, quase caí.
            E então o silêncio. Quietude. Minhas botas se arrastavam pelo chão da caverna. Peguei minha adaga.
            Subitamente havia um Assamita na minha frente com uma faca que fazia seu arco até meu pescoço. Saltei para trás, na direção de golpes que me chicoteavam por trás. Fui erguido do chão, e o chão subitamente começou a girar, e meu rosto começou a ser esmagado contra ele.
            Uma bota pressionava meu rosto, me prendendo no chão.
            Algo surgiu no canto de minha visão periférica. Algo pequeno, uma forma feminina...que foi em direção de um dos túneis. Uma mão em meus cabelos puxou novamente minha cabeça para cima.
            Alguém gritou um nome – “Viella!” Era a minha voz.
            E do túnel, um lamento ecoava, uma única palavra, a palavra que pairava no ar anteriormente, evadindo-se da minha compreensão.
            Minha, minha, minha....
            “Viella”. Era a minha voz novamente.
            Uma voz baixa e sarracena: “Sua amiga o abandonou, gangrel. Nós estamos sozinhos agora.”
            Mais silêncio. Minha cabeça foi fortemente puxada para a esquerda. Vi um corpo grande, de pele escura, esticado no chão, cujo crânio com turbante havia entrado em colapso, do qual saíam sangue e miolos.
            “Você matou Faisal”, disse o Assamita. “Por isso e por outros crimes, você e seus amigos manafiqun irão sofrer imensamente.”
            “Viella”, eu chamei.
            “Já te disse. A infiél fugiu para os túneis. Não adianta chamá-la. Sabemos que foi ela quem realizou o amaranto em nosso mestre. Nós a encontraremos.”
            Atrás do corpo do Assamita morto havia uma sombra imóvel na parede.
            “Aguirre! Me ajude!” Gritei por dentro.
            A sombra começou a descer lentamente para a mesma abertura pela qual Viella havia entrado. O Assamita ocupado comigo me levantou pela cabeça e então a bateu contra o  solo. Uma, duas vezes, três vezes. Senti o  gosto de sangue.
            “Aguirre!”
            A sombra na parede se fundiu com a escuridão do túnel. Havia desaparecido.
            Eles me empurraram ainda mais para dentro da escuridão. Eu não resisti. Atrás de mim o outro assassino me empurrou para frente com a ponta de sua adaga. O corpo do assamita, aquele que consegui matar, foi abandonado na câmara atrás de nós.
            Nós paramos num determinado ponto. Agora uma pressão familiar vibrava no ar. O líder posicionou sua cabeça como se estivesse tentando ouvir algo. Vi seus olhos ficarem vazios, eu o vi ficar boquiaberto.
            Ele levantou a cabeça e falou com uma voz pesada e ininteligível.
            “Sim” , ele disse. A tensão no ar diminuiu, e continuamos  a andar.
            Senti que as coisas estavam começando a fazer terrível sentido. Os Assamitas nos atacaram abertamente, coisa que nunca fazem. Por que agiam assim? E por que atacaram apenas a mim e não a Viella?
            Olhei de relance para o líder. Agora ele andava lenta e desajeitadamente, sem o devido controle dos movimentos. Ele se virou e olhou para mim. Sua face estava tão viva e consciente como uma pedra. Seus olhos estavam completamente vazios.
            Paramos mais uma vez. A sensação de tensão retornou. O ar parecia cheio de sussurros, sibilando na fronteira da compreensão. Mais uma vez o líder posicionou sua  cabeça. Ele parecia tonto, quase inconsciente. Suas pernas oscilaram, e ele disse uma única palavra. “Sim”.
            Agora entendi o que estava acontecendo, porque os assamitas estavam se comportando de forma tão estranha. Mas não via como tal compreensão pudesse me ajudar em alguma coisa.
            Nós caminhamos, e depois de longos minutos, entramos numa câmara idêntica a primeira.
            Ela estava lá, e eu a vi: Esperando, como sabia que estaria. Medusa.
            Medusa era pequena, magra, e estava nua. Seus cabelos eram tão negros que quase chegavam ao tom azulado, presos em tranças que se enroscavam como num abraço serpentino. Ela sentou, complacente e sorrindo, sobre uma pequena elevação de pedra. Uma rainha reinando nas trevas, emitindo julgamentos de seu trono gélido e rígido.
            A única luz dentro da câmara vinha de sua pele de tom de mármore branco, que brilhava como se possuísse luminescência própria. Eu não consegui distinguir a cor de seus olhos. Seus lábios eram fartos e muito rubros. Atrás de seu trono só havia escuridão.
            Ela acenou positivamente com a cabeça para o Assamita. “Obrigada, Khalid, por seu ...auxílio. Você respondeu ao  meu chamado com rapidez admirável”. Sua voz era baixa e suave, com um sotaque estranho.
            O Assamita não disse nada. Ele parecia uma estátua. Algo apareceu em minha visão periférica. Era uma sombra, movendo-se lentamente pelo chão nas proximidades da câmara. Nem a Medua nem os Assamitas pareciam ter percebido.
            A sombra no chão entrou na grande escuridão atrás do trono da Medusa, se tornando indistinguível da mesma.
            Medusa veio em minha direção. Seus quadris femininos se moviam com uma erotismo casual. Atrás dela,  despojado de sua luz, seu trono caiu ainda mais na escuridão.
            Khalid se moveu para a direita e o outro assamita para minha esquerda.
            Medusa ficou diante de mim. Com sua mão pequena tocou meu queixo.
            “Creio que vou devorá-lo, meu precioso homem-fera loiro.”
            Franzi as sobrancelhas. Suas palavras me congelaram, mas não por causa da ameaça contida nelas. Tentei lembrar a razão. Mas a pressão retornou, e a questão de repente se tornou completamente irrelevante. Eu a abandonei, e a pressão aliviou.
            Olhei sobre a cabeça da Medusa, evitando olhar em seus olhos. Atrás dela, seu trono agora estava completamente invisível, coberto por uma massa impenetrável de escuridão. Precisei conter um súbito desejo de gargalhar.
            As sombras atrás da Medusa começara a se expandir como tinta na água. Um longo e fino tentáculo quase tocou nos pés de meu atormentador.
            Senti um puxão em meu queixo: Os dedos gélidos da Medusa. Precisava mantê-la distraída para  a ameaça atrás de si. Olhei então para seu rosto.
            Vi seus olhos verdes brilhantes, que de repente se tornaram azuis.
            Foi então que entendi completamente. Agora não mais tinha vontade de rir.
            “Você não é – Foi tudo que tive tempo de dizer. E então...
            ...Aguirre explodiu das trevas.!

            O ataque de Aguirre veio rápido e acertou a minha esquerda.
            Senti, ao invés de ouvir, a chicoteada de sua lâmina de sombras quando esta acertou o Assamita com toda força.
            Em minha frente, a setita se virou, e passou a  ser perseguida por sombras.
            Um momento depois: O impacto de um corpo pesado atingindo o chão.
            Agora eu estava livre, sozinho com o Assamita de nome Khalid. Eu sabia que não tinha muito tempo para evitar um desastre de acontecer.
            Minhas mãos tremeram em agonia. A pele queimou e se abriu. Meus dedos se distenderam, aumentando em tamanho, crescendo em garras de duas polegadas de comprimento, afiadas como facas.
            A dor diminuiu. Agora minhas mãos podiam matar mais eficientemente. Eu circundei meu oponente.
            “Khalid”, eu disse. “Nós não devemos lutar. Tenho uma razão para achar que todos nós fomos controlados por um poder adormecido que segue seus próprios propósitos. Todos nós, inclusive você! Você e seus companheiros estão aqui apenas porque ela os convocou, os  fez vir.”
            Khalid gargalhou friamente. Ele parecia estar no controle de si memso agora, frio e autoconfiante.
            “Não me importo” , ele disse. “Você e seus amigos fizeram de meu senhor shahid um mártir. Suas mortes são  uma questão de vingança que deve se completar”.
            “Khalid, você precisa escutar! A mulher que vimos não era ...”
            Ele se lançou em mim, urrando com uma faca em sua mão. Eu me esquivei e o golpeei com minhas garras, acertando seu abdômem.
            Então ele caiu, rolando até a base da câmara da caverna. Ele caiu prostrado, agarrou-se em seus pés, virou-se vagarosamente para olhar para mim.
            Minhas garras penetraram fundo. Khalid olhou para seu estômago se abrindo e para o sangue de seu coração saindo, fluindo até chegar ao chão. Sua face se retorceu em agonia e surpresa.
            Seu olhar em minha direção era feroz de tanto ódio.
            “Outros virão”, ele disse. “Outros sempre virão”.
            Eu não respondi.
            Lentamente, quase que de modo reverenciador, o assamita se ajoelhou diante de mim. Ele inclinou a cabeça e olhou para mim. Seus olhos, como carvão incandescente em sua face de tom negra,  tremeluziram fracamente e se fecharam.
            E então finalmente ele morreu.
            Eu não tinha tempo a perder. Corri, voltando pelos túneis para o lugar onde havia lutado contra os Assamitas pela 1ª vez. O lugar estava vazio.
            Xinguei e corri para o outro túnel. Haviam trevas cobrindo o lugar. Continuei correndo, Um assobio enlouquecedor se insinuou, surgindo atrás de meus olhos, ficando insuportavelmente intenso. Eu tropecei, caí e fiquei confuso.
            Mais alguns minutos perdidos. Sacodi a cabeça, e o som sibilante reptiliano saiu da minha mente. Então ouvi. Logo em frente - gastei sangue – corri o máximo que pude.
            Corri para a outra câmara, e parei de súbito. Meus olhos identificaram duas formas no chão, num abraço terrível. Uma fêmea de costas, nua, branca, com os braços inclinados em postura de rendição. Arqueada sobre ela estava uma nuvem negra.
            E da nuvem vinha sons de alguém se alimentando.
            “Aguirre!” Eu gritei. Mas era tarde demais. Logo depois que eu cheguei, o rito do amaranto se completou.
            O corpo, agora sem sangue, começou a murchar e se desfazer, entrando em colapso. Em poucos segundos o corpo ficou tal como uma múmia, em seguida como um esqueleto, e então se reduziu a cinzas.
            Mas não antes de eu ter tempo de ver o disfarce que escondia suas verdadeiras características desaparecer, revelando o rosto e corpo de Viella.
            Seu banquete de almas estava completo, Aguirre emergiu das sombras, se inclinou para longe dos restos mortais em cinzas.
            “Eu a devorei” , ele disse.
            “Era Viella Aguirre, não era a Medusa”.
            Os olhos negros e fundos de Aguirre se arregalaram. “O quê? Do que você está falando, Rollo?”.
            “Lá na sala do trono, olhei para os olhos de Medusa. Eles eram verdes, e depois ficaram azuis.”
            “Viella... nunca conseguiu disfarçar os olhos direito, lembra?”
            Aguirre abriu a boca, e a fechou logo em seguida. Eu esperei, até ter certeza que ele estava ouvindo. Então disse:
            “Viella e os Assamitas estavam sob controle da Medusa. Os Assamitas foram convocados por ela. Foi assim que nos encontraram tão rápido. Quanto a Viella, não sei quando Medusa tomou o controle de sua mente. Mas tomou. Provavelmente foi lá em cima. Agora me ocorre como foi estranho que Viella soubesse sobre a abertura debaixo do ídolo.”
            “Depois que entramos e os Assamitas chegaram, Medusa fez Viella nos abandonar. Ela precisava deixar Viella isolada. Então Medusa forçou que se disfarçasse, fingindo ser Medusa”.
            Fiz uma pausa, para reunir as lembranças.
            “Sim” , eu disse. Os Assamitas pararam duas vezes quando estavam falando comigo e com ela – com Viella aliás. Deve ter sido Medusa os conduzindo a esperar enquanto Viella terminava a transformação. O timming era importante. Tenho uma pergunta para você Aguirre. Onde você estava quando me deixou com os Assamitas?”
            “Persegui Viella. Então fiquei confuso. Fiquei perdido por um tempo. Então ouvi você e os assassinos, e os segui até a câmara.”
            Acenei com a cabeça. Sabia tudo a respeito desta confusão. “Medusa foi quem te confundiu, Aguirre. E o estratagema dela funcionou. Quando encontramos Viella, ela estava disfarçada. Com isso achamos que fosse Medusa. Até o momento em que olhei em seus olhos.”
            “Eu não vi seus olhos” , Aguirre lamentou. “Estava atrás dela o tempo todo.”
            Cerrei meus punhos. O plano de Medusa foi de fato astuto. Percebi que não foi apenas Viella e os Assamitas que foram feitos de marionetes pela adormecida. Me perguntava se o controle sobre nós ainda estava ativo, mas rejeitei esta especulação inútil.
            Aguirre colocou as mãos na cabeça e começou a surtar. “Então onde está... Medusa, Rollo? Onde ela se esconde?”
            “Mais fundo na terra, provavelmente. Dormindo, mas ainda assim desperta o bastante para jogar seu joguinho conosco. Isso importa Aguirre? Nós nunca tivemos chance, nunca.”
            Aguirre fez apenas uma feição de lamento.
            “Deve ter sido do agrado da Medusa”, eu disse “Nos enganar até realizarmos o Amaranto em um dos nossos. E se Medusa for a senhora de Viella, então o embuste deve ter sido ainda mais doce. Imagino que nunca descobriremos o quanto Viella odiava Medusa”.
            A voz de Aguirre alcançou um tom apavorado. Ele começou a arranhar seu rosto com as unhas.
            “Rollo!”, ele exclamou. “Eu posso sentí-la! Posso sentir Viella dentro de mim! Ela é como uma cobra serpenteando em minha mente! Meu deus! Meu deus! Kindermass estava certo! Posso sentí-la em minha mente!”
            Fechei meus olhos. “Não há mais nada aqui para nós. Você vem comigo, Aguirre?”
            Aguirre apenas continuou a se lamentar e se balançar.
            “Uma cobra serpenteando” ele dizia assustado “Uma cobra serpenteando em minha mente”.
            Virei-me para trás, deixei Aguirre lá. Saí da câmara onde ocorreu o amaranto e fiz o caminho de volta até a abertura que nos levou ao subsolo.
            Por um momento fiquei diretamente debaixo da abertura, olhando para a lua. Atrás de mim, das profundezas das trevas, vinha o som dos gritos e urros de Aguirre.
            Subi e saí da câmara, emergindo no frio ar noturno. A tempestade de inverno havia acabado, e o vento havia desaparecido. O céu estava escuro e repleto por estrelas.
            Desci da elevação, mudei para forma de lobo e atravessei a ilha tão rápido quanto pude. Não olhei novamente para a caverna, nem para o ídolo.
            Eventualmente, alguns meses depois, retornei a Paris, onde relatei a Kindermass tudo o que havia acontecido. Ele apenas acenou com a cabeça.
            Obviamente, nunca mais vi Viella. Ela me deixou para sempre, foi extraída da minha vida completa e irrevogavelmente. Para ela e para mim, não haveria reencontro. Ela se foi para  todo o sempre.
            Quanto a Aguirre, não sei se Medusa o pegou ou se o deixou ir. E não estava certo de que me importo.
            As vezes acho que tenho ciúmes de Aguirre. Ele estava sempre com medo de que Viella o abandonasse. Mas ele não tem com o que se preocupar, não mais.
            Agora ela nunca o abandonará.




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