Um conto bacana do livro Dark Tyrants
Traduzido por Acodesh
Do livro Dark Tyrants, págs 83 a 107
(É impressão minha ou pouquíssima gente tem esse livro?)
Devorando a Medusa
Estava
frio, na noite em que devoramos a Medusa.
Do
lado de fora da taverna, as poucas oliveiras que subiam pela parede rochosa de
Santorini, se curvavam e se partiam ao meio com os ventos da intensa chuva. No
porto de Akrotini, os barcos de pesca eram sacodidos pelas ondas na baía
tempestuosa.
Por
outro lado, dentro da caverna, onde Aguirre havia sentado no lado da mesa
oposto ao meu, tamborilando os dedos numa poça de cerveja laranja que os gregos
davam o nome de retsina, estava quente. O calor vinha de uma lareira a uma
distância aproximada de 5 metros de nós, no centro da taverna. Um braseiro de
carvão emitia uma detestável fumaça negra numa chaminé de couro pendurada
logo acima.
Eu
não estava gostando do fogo, e sabia que Aguirre também não estava. Mas ele
insistiu para que sentássemos próximo a ele. Aguirre era assim: luta , teste,
busca por fraquezas, nele mesmo se necessário e em outros se possível. Eu
aprendi a esperar dele este tipo de coisa. Afinal, Aguirre era um Lasombra, e
eles são um clan que se alimenta da fraqueza com tanta voracidade com o qual os corvos se banqueteiam nos corpos mortos de um campo de batalha.
E
assim era como as coisas sempre funcionavam entre Aguirre e eu. Ele testando,
procurando, colocando em prova. E eu em silêncio, esperando de forma estóica.
Nunca, jamais mostrando a ele qualquer fraqueza. Aguirre e eu éramos parceiros
– e eu confiava nele. Mas confiança com os Lasombra só pode ir até certo ponto
antes de se transformar em ingenuidade.
Eu
não era ingênuo. Então sentei à mesa próximo a lareira, e fingia, tal como
Aguirre, beber minha retsina. E fingia também, tal como Aguirre, que não me
importava com o brilho vermelho do calor que aparecia na nossa pele conforme
falávamos, discutindo e planejando.
Imagino
agora que foi o esforço de mentir para Aguirre sobre o fogo, e meu temor, que
me fizeram falhar em perceber o Assamita até que fosse quase tarde demais.
Uma
sombra passou sobre o tampo de nossa mesa, e com isso o calor da lareira
diminuiu por um instante. Eu olhei na direção oposta ao do rosto pálido e
ansioso de Aguirre.
Um
garoto passou por nós e sentou na mesa a 10 pés de distância. Ele tinha cabelos
negros, pele pálida, era magro e aparentemente efeminado. Ele parecia um jovem
pescador entediado, vindo até a taverna para beber e esperar a tempestade de
inverno passar, para enfim poder retornar ao mar com seu barco e suas redes.
Havia
algo no rapaz, algo familiar...
Subitamente
o reconheci. O Assamita. Ele havia me encontrado outra vez. Este Assamita, este
assassino não era um desconhecido. Pensei ter tido sucesso em escapar de sua
perseguição de 3 noites atrás, tirando-o de meu encalço.
Obviamente
eu estava enganado...
Ele
bocejou e esticou os braços. Seus dentes eram muito, muito brancos.
"Ela
dorme", disse Aguirre, despercebido do perigo que corríamos. “E é por isso que
não precisamos ter medo dela”.
“Aguirre”
“Ela
dorme Rollo! Ela dorme! Do que você tem medo?”
Virei
novamente para Aguirre, mas não estava prestando atenção nele nem no fogo.
O
Assamita obviamente estava disfarçado. Não era tão tolo para se revelar
abertamente para dois vampiros mais velhos. Mas eu o havia visto pelo que ele
era. Qualquer que fosse seu talento em se disfarçar, meu talento em penetrar em
disfarces era obviamente maior.
Ele
não parecia estar carregando armas. Mas isso poderia fazer parte do disfarce,
disso eu sabia. Eu me perguntava se ele estava ali como um batedor, me
perguntava se havia outros com ele.
“Não
tenho medo de quem dorme” , disse eu para Aguirre. “Tenho medo dele”.
Já
não havia quase nenhuma humanidade em Aguirre – nosso tempo juntos me fez
perceber isso – mas ele mantém alguns hábitos de seus dias como mortal.
E
assim ele piscou, como se ainda fosse capaz de sentir surpresa.
“O
pescador?” Ele murmurou. “Um amigo do turco?”
Fiz
um sinal positivo com a cabeça.
A
mão de Aguirre deslizou até sua espada, e a minha fez o mesmo com minha adaga.
A
atenção do garoto agora estava sobre nós, mas precisávamos fazer com que ele
chegasse mais perto. Lutar com um Assamita a distância é aprender rapidamente
como sofrer a morte final.
Parecia
que era hora para outro dos testes de Aguirre.
Falei
em voz alta: “O Assamita. Aquele de quem Viella bebeu. Seu nome era Ulic, não?”
Os
lábios de Aguirre deixaram seus dentes a mostra. “Não importa qual era o nome
do maldito sarraceno. O que importa é como ele berrou enquanto Viella sugava sua
alma.”
Nós
rimos um pouco. No canto de minha visão periférica, vi o garoto sentado com a
coluna ereta.
Bom,
a maioria dos Assamitas são tão frios em seus corações tal como Aguirre e eu.
Mas alguns, como o garoto pescador, são quentes e rápidos quando movidos pelo
orgulho, tal como se ainda fossem mortais. O garoto era um Assamita deste tipo.
E por isso ele iria morrer.
Mais
pressão. Em breve o garoto não seria mais capaz de suportar. “O turco era um
covarde”, eu disse. “Ele não tinha honra, e fedia não é, Aguirre?”
Os
olhos de Aguirre dançavam olhando para mim. “Sim, de fato ele fedia. Estou
feliz por ter sido Viella quem se alimentou dele. É adequado que o herege
sarraceno caísse para o mais fraco membro de nossa cabala. Ele coçou o nariz
com seus dedos e ficou de semblante fechado. “Embora eu deva reconhecer que ela
possui o estômago mais forte.”
O
garoto levantou da cadeira.
Era
tempo de dar a Aguirre a abertura para desferir o golpe verbal final. “o turco
fedia a quê, Aguirre? Estou tentando me lembrar mas...”
O
garoto estava a 2 pés de distância.
Aguirre:
“Não é óbvio? Ulic o turco, nosso amigo Assamita, fedia a porco!”
O
garoto gritou algo, e uma faca apareceu em sua mão. Atrás dele, mortais se
desesperavam, indo para trás, trombando uns nos outros, correndo ao sair da
porta da taverna.
Nós
permanecemos. A espada de Aguirre já estava desembainhada. Haviam sombras
enroladas como fios da própria noite ao redor de sua espada. Minha adaga também
já estava em minha mão.
O
garoto deu um passo para trás, o ódio em seu rosto começou a se dissipar. Ele
soube que havia cometido um erro, que o levou até nossa armadilha.
Hora
de se juntar a seu mestre Ulic no inferno”, sorria Aguirre. Ele ergueu sua
espada.
“Parabéns”.
Uma voz baixa vindo por trás do Assamita. Uma voz de mulher, doce mas firme,
como se tivesse acabado de despertar do sono. Ela circundou a fogueira. Era
alta e se portava de forma estranha. Usava uma túnica masculina de algodão
marrom no estilo do norte. Seu cabelo era curto e negro, molhado pela chuva.
Seus olhos eram verdes ou azuis, era difícil dizer. Sua pele era pálida,
manchada de vermelho, surrada pelo vento.
Por
alguma razão o Assamita baixou sua faca.
A
taverna estava vazia na parte de trás do Assamita. Os sons que quebravam o silêncio eram: o
crepitar brilhante do carvão na lareira e os ramos de oliveira estalando com o
vento.
“Garota”,
eu disse. “Vá embora. Você não sabe o que enfrenta aqui”.
A
garota deu de ombros e olhou para o garoto. Sua face permanecia sem expressão,
uma máscara de serenidade, ou indiferença. Ela olhou nos olhos do garoto.
O
expressão do garoto mudou. Lentamente ele levantou sua adaga até a altura de
sua garganta. Seus olhos estavam em pânico.
Ele
começou a serrar sua própria garganta com a lâmina. Sangue começou a escorrer.
“Existem
outros!”ele gritou.
O
garoto continuou se cortando. Em pouco tempo os tendões e ligamentos de seu
pescoço estavam visíveis. Sua face escureceu quando seu disfarce não se
manteve., mas pude ver que ele ainda era um garoto
“Existem
outros”, ele disse engasgado, com o sangue que saía de sua garganta cortada.
“Sempre existirão outros!” Em seguida sua garganta se encheu de sangue, e ele
já não conseguia falar.
O
garoto ainda levou vários minutos para enfim se matar. Nós permanecemos e
assistimos até o fim. Ele perdeu a firmeza e caiu no chão, como um receptáculo
de vinho, vazio.
Aguirre
disse: “Ele quase cortou a cabeça fora, estou impressionado”
Aguirre
e eu embainhamos nossas armas, depois nos sentamos.
O
cheiro de sangue do garoto morto era muito forte. Eu ouvi o barulho de alguém
engolindo algo no chão. Um som que transmitia ansiedade e cobiça. A garota
estava se alimentando.
Pouco
tempo depois, senti cheiro da chuva, de
lã molhada e sangue. A garota estava sentada num dos bancos próximo a mim com
suas mãos sobre as minhas, sua pele estava quente. Mas logo foi esfriando,
tornando-se tão fria quanto a minha. Sua pele já não tinha rubor. Agora era
pálida como mármore ou giz – ou como a carne de um cadáver.
Em
seguida ela riu, com sua risada característica.
“Viella”,
eu disse meneando a cabeça. Ela não mais era a camponesa magricela que havia
forçado o Assamita a se matar. Era Viella, o terceiro membro, juntamente comigo
e com Aguirre, a formar nossa pequena cabala.
Mais
risadas. “Eu te enganei de novo, Rollo. E a você também Aguirre”.
Aguirre
deu um riso forçado para ela, mostrando suaas presas finas e afiadas.
“Eu sabia
que era você, Viella. Você não oculta seus olhos direito. Eles mudam entre o
verde e o azul.”
“É
por causa da luz da fogueira”, ela resmungou. “Meu disfarce estava perfeito”.
Aguirre
resmungou.
“Sim”,
eu disse. “Seu disface estava perfeito.”
Sua
cabeça estava em meu ombro. “Você é tão gentil Rollo. Si gentili. Você não é como Aguirre”. Ela chegou mais perto e se
aninhou. Seu corpo próximo ao meu parecia tão pequeno como o de uma criança.
“Então
por que você ama Aguirre e não a mim? Eu sou um gentleman e ele não é.”
“Eu
amo Aguirre porque ele não é um gentleman.”
“Não
entendi”.
Um
sorriso malicioso. “Ele não é um gentleman, e eu não sou uma lady. Portanto
somos perfeitos um para o outro.”
Eu
me perguntava se Viella estava me zombando, e decidi que ela estava.
Eu
era o único do grupo que tinha bom senso.
Ela
riu novamente, beijou meu pescoço. “Meu precioso homem fera loiro. Tão sério”.
O
silêncio imperou. Então, por um curto período e pela última vez, sentamos
juntos na taverna: Don Felix Lopes Aguirre de Garabandal, do clan Lasombra,
Marchesa Viella Maria Julia di Messina, Seguidora de Set; e o plebeu, eu –
Rollo do clan Gangrel.
“Finalmente
Aguirre disse; “Chegou a hora”.
Nós
levantamos da mesa e caminhamos juntos até o lado de fora da taverna vazia e
para dentro da noite, Viella próximo a mim, sua mão dentro da minha, tão
pequena e frágil como um pássaro recém-nascido. Mas sua pele era fria, na noite
em que devoramos Medusa.
******************
Foi
Kindermass quem nos disse onde encontrar a Medusa. Kindermass era um Nosferatu.
Sua feiúra era assustadora, seu conhecimento imenso e sua consciência seguia um
único princípio: a conveniente sobrevivência dele mesmo. Nós percebemos que
ele era maravilhosamente útil.
Kindermass
vive em Paris, o melhor lugar para alguém como ele, um negociador de
conhecimento. Conhecimento não, informação.
A
maioria dos Nosferatu gosta de viver abaixo da superfície, como ratos numa
coelheira. Kindermass era diferente. Ele adorava o céu noturno, passava suas
horas acordado nos telhados da Île de la Cité.
Na
noite seguinte depois de que devorei o magricela Duque Branco, nós o
encontramos aqui, sentado numa gárgula em cima da catedral Notre Dame, ele
estava na lateral da gárgula como se fosse uma bolsa de couro, cheia de
dinheiro.
Nós
esperamos respeitosamente, como era nosso costume. Finalmente Kindermass falou.
Sua voz era comedida e clara, como a de um sacerdote decrevendo os pecados de
seu rebanho.
“Vejo
que se banquetearam bem. O Duque foi de seu agrado?”
“Sim,
ele foi.” Eu ainda podia sentir o sangue do Duque em minhas veias. No momento o
sentimento me fez querer gritar e pular, partir o mundo em dois.
“Eu
te parabenizo. Minha ajuda foi útil?”
“Foi.
Nós nunca acharíamos o Duque sem a sua ajuda.”
“Meu
pagamento por favor.”
Me
ajoelhei perto dele, e alcancei minha túnica, relutante em dividir meu prêmio.
Eu o puxei para fora e o coloquei no telhado.
“Espero
que isto te agrade”.
O
pagamento – um pequeno busto de mármore, com algumas polegadas de altura, de
estilo romano ou grego. A cabeça de um garoto: lábios largos, nariz reto, cabelo
curto e cacheado. Teria sido o busto do jovem Alexandre. Pertencera ao Duque
Branco.
“Sim”.
Kindermass falou com ênfase. Ele se abaixou diante do busto.
“Sim,
me agrada. Muito bem Gangrel. O pagamento foi quitado em 100%”.
E
assim, seu punho direito deformado desceu sobre a cabeça com a força de um
golpe de martelo. O busto se partiu em diversas lascas grandes.
Viella
ficou perplexa. “Por que você fez isso Kindermass? A cabeça era belíssima.”
“Eu
odeio coisas belas” , disse Kindermass. “Elas são sempre o produto da
violência."
Viella
continuou com desdém: “Então você deve de fato odiar muito a Aguirre e a mim.”
“Nem
um pouco, pequenina. Eu vejo abaixo do que vocês mostram na superfície, e
portanto me agrado de ambos.”
“Basta”,
interrompeu Aguirre. “É a minha vez agora de ter um banquete de almas. Me dê um
alvo Kindermass. Apenas tenha certeza que ele seja próximo de Caim, e que tenha
pouco poder.”
“Um
tipo raro”. Kindermass falava enquanto puxava sua orelha esquerda. E eu poderia
jurar que ela havia crescido. “Seria difícil sugerir um nome de imediato”.
“Muito
bem , e por que não devorar você mesmo, Kindermass? Estamos em 3, e você é
apenas um. Por que eu não deveria devorá-lo?”
“Que
nojento!” , disse Viella enquanto cobria sua boca.
Por
um momento Kindermass nada fez. Então se levantou e olhou na direção de
Aguirre. Um olho era pequeno e negro. O
outro era grande como uma maçã e coberto com um limo branco. Este olho parecia
rolar dentro da órbita ocular como se dotado de vida independente.
Kindermass
sorriu. Não foi algo agradável de se ver
“Você
gostaria de tentar, senhor das sombras?”- ele disse. Teste-me então. Me mostre
sua força, o poder sobre as trevas que você possui.”
“Eu
estava apenas brincando velhote” , disse Aguirre. Era obviamente uma mentira, e
Kindermass sabia disso.
“Mas
eu não estou brincando”. Disse Kindermass, ainda sorrindo.
Aguirre
deu de ombros, desviando o olhar de Kindermass. “Chega, você já se fez
entender”.
Mas
Kindermass ainda não havia terminado, não estava satisfeito.
“Um
aviso para você, Lasombra. Se você realizar o rito do amaranto em alguém cuja
força de vontade seja maior do que a sua, você pode terminar... digamos que
você nunca mais sentirá a dor da solidão. Ou ter a privacidade nos próprios
pensamentos. E sim, Lasombra, minha força de vontade é maior do que a sua.”
“Você diz bobagens, Kindermass” ,
disse Viella. “Isto é uma mentira dos anciões. Eu já devorei 3 vezes, e ninguém
além de mim vive no meu corpo”.
Kindermass
segurou seu nariz, e então ficou olhando para seu dedo. Ele parecia surpreso
por não haver nada no dedo. Kindermass piscou para Viella como se tivesse
notado sua presença apenas agora.
“Bobagens,
você diz? Uma mentira dos anciões? Eu soube de uma fonte segura de que o
próprio Tremere carrega Saulot em sua mente. E que o ancião Salubri as vezes
sobrepõe o controle do magus e o faz emitir decretos, os quais o levam a
arrependimentos.”
“Os
lábios de Aguirre se franziram. “O que explica, eu imagino, porque Tremere, que
na verdade é Saulot, ordenou o extermínio de cada uma das crias de Saulot.”
Sons
sibilantes: Kindermass rindo. “Talvez Saulot não goste mais de suas crias como
costumava gostar.”
Nos
nos juntamos a gargalhada. O próprio Kindermass vivia com terror de seu
fundador, que desejava matar seus descendentes como uma oferta a Caim. Foi
engraçado para Kindermass, pensar que talvez seu clan não fosse o único com
esse problema.
“Diga-nos,
qual é a nossa próxima vítima” , disse Aguirre.
“Eu
conheço um adormecido cujo sangue é forte. Mas ela descansa longe daqui, numa
ilha próxima as terras dos gregos”.
“Quão
próxima ela é de caim? Qual é o clan dela? Onde precisamente ela descansa?”
“O
rumor é que ela diablerizou a cria de um dos antigos, na trilha da Rosa Negra.
Sobre seu clan...” Ele olhou para Viella “Ela é uma dos seus pequenina. Uma
Seguidora de Set.”
“Qual
é seu nome?”, disse Viella – aborrecida por não ser sua vez de matar. Inquieta,
movia um pé, depois o outro.
“Seu
nome verdadeiro eu não sei. Mas eu ouvi que seu clan a considera uma renegada.
Os seguidores de Set apenas a chamam de “Medusa”. Uma referência óbvia ao
górgona com cabelos de serpente da mitologia grega. Um nome que não revela
nada, uma vez que se aplica a qualquer setita fêmea”.
Viella
ficou paralisada.
Kindermass
não deixou perceptível se havia notado. “Medusa fez uma coisa que é considerado
insultante aos sacerdotes do Grande Templo. Ela foi forçada a fugir da África e
procurar abrigo debaixo do solo numa terra distante.”
Aguirre
ia começar a falar, mas Viella o interrompeu. “Qual foi o crime de Medusa?” ,
uma voz incisiva, com uma ansiedade que mal cabia no peito.
Kindermass
deu risadas. “Seu crime? Foi um crime
muito sério para um setita. Eu acredito que ela numa ocasião praticou um ato de
bondade.”
Aguirre
e eu gargalhamos, Viella não disse nada.
Eu
disse: “Você conhece esta Medusa, Viella?”
“Tenho
razões para acreditar que Medusa é alguém que me ofendeu no passado” , foi tudo
que ela disse.
Aguirre
fez sinal positivo com a cabeça. “Se Medusa praticou um ato de bondade, entendo
como pode ter te ofendido, Viella”.
Viella
pareceu não ter ouvido. Ela deu as costas para Aguirre.
Kindermass
fechou os olhos, começou a se balançar. Ele estava prestes a nos dar um
sermão.
“Ouçam
e aprendam, crianças do Amaranto. Eis a forma como vocês encontrarão a
Adormecida.”
Sua
voz se tornou pedagógica e monótona. “Ao sul da terra dos gregos, no mar
chamado Aegean, há uma ilha chamada Santorini, uma ilha que já foi um poderoso
vulcão. Nesta ilha há uma caverna, e na entrada desta caverna há um ídolo. É
nesta ilha, dentro desta caverna, que vocês encontrarão o que procuram: o
refúgio da Medusa.”
Viella
permaneceu por perto, sua face séria, distante, fechada a minha inspeção. Ela
não parecia estar ouvindo Kindermass conforme este dava as explicações, mas eu
não tinha certeza.
Ela
estava olhando para sudeste, na direção da Grécia.
************************************
Nós
andamos pela ilha erodida pelo vento. A chuva havia parado, mas o vento ainda
era forte. A rocha sob nossos pés tinha um tom marrom quase preto. Em nossa direita
declives sem vegetação se precipitavam até a baía abaixo. Na nossa frente a
ilha se estreitava apontando para o Sul de Creta , e depois para o Egito.
Kindermass nos disse que a caverna com o ídolo estaria aqui na extremidade do
estreitamento.
Obviamente
estávamos sozinhos. Nenhum grego viajaria pelos atalhos sem árvores do coraçao
de Santorini enquanto pudesse perfeitamente dormir sob um teto, aquecido por sua
lareira. Atrás e abaixo de nós, abraçando a baía, estava a cidade de Akrotini,
suas construções baixas e sem vida debaixo da lua encoberta por nuvens.
“Ainda
tenho fome”, disse Viella olhando para a cidade. “A maior parte do sangue do
garoto foi desperdiçado, derramado no chão antes que eu pudesse bebê-lo.”
Aguirre
resmungou: “Você deveria ter pensado em se alimentar de novo antes de termos
saído. Agora não temos tempo. Ainda não encontramos Medusa. Precisamos nos
apressar.
“Não
seja tão impaciente, Aguirre”, eu disse. “Kindermass nos disse para procurarmos
pelo ídolo e pela caverna, e ele nunca se enganou antes.”
“Um
ídolo!” zombou Viella. “Como ela...” Sua voz desapareceu.
“Sim?”
, disse Aguirre maliciosamente. “Como ela o quê?”
Viella
não respondeu. Por um tempo caminhamos em silêncio.
Finalmente
ela quebrou o silêncio. “Eu quis apenas dizer que é característico da personalidade
de Medusa marcar seu lugar de descanso com um símbolo religioso.”
Aguirre
piscou para mim. “Símbolos religioso te ofendem, Viella? Eu achava que setitas
eram muito religiosos. De sua própria maneira é claro.”
Para
minha surpresa, Viella não se irritou com o tom zombador de Aguirre. “Você está
certo Aguirre. Nós setitas somos religiosos. E não, eu não me ofendo pelo fato
de Medusa usar um ídolo para marcar seu lugar de descanso. Eu me incomodo pelo
fato de que ela tenha escolhido fazer qualquer marca em seu lugar de repouco.”
“Eu
não entendo”.
“Não
é óbvio? Ela deseja tornar sua presença conhecida por todos, mesmo que
permaneça sozinha abaixo da terra. Ela gosta de atenção do mesmo modo que
gostamos de sangue.”
“Eu
não tenho pena da Medusa. Ela de considerar seu sono muito solitário.
Obviamente isso irá mudar em breve.”
“O
ídolo” , eu o vejo.
Havia
uma pequena elevação de rocha vulcânica a nossa frente. No centro da elevação,
erguido como uma tumba, havia uma forma esguia e espiralada: o ídolo. Mesmo no
frio, filamentos de vapor se erguiam da elevação. Parecia que o vulcão
adormecido no coração de Santorini ainda estava ativo.
“Sim”,
disse Viella. “Aquele é o ídolo que marca o refúgio da Medusa. Eu...nós.. o encontramos”.
Nós
nos apressamos, excitados pela confirmação de nossos desejos, vencendo
facilmente a elevação. Sua superfície era de rocha negra lisa onde haviam
diversas aberturas. Das aberturas saíam vapores, amarelos, sulfurosos.
Uma
grama fina e quebradiça se partia sob nossos pés e era esmagada conforme
circundávamos o ídolo cautelosamente.
O
chão debaixo da grama era quente o bastante a tornar doloroso ficar de pé muito
tempo no mesmo lugar. O ar a nosso redor era ácido, e quente como numa noite de
verão.
Aguirre
e eu demos uma pausa na exploração das proximidades e começamos a olhar para o
ídolo. Era uma mulher, alta e voluptuosa, sua face desgastada por anos de vento
e chuva. Ela ficava numa grande base circular, seus braços para cima, seus
seios revelados por um vestido que se dividia abrindo-se na parte da frente e
de trás. Em cada uma das mãos da mulher havia uma cobra. Algo circulava seu
delicado pescoço branco.
“Um
colar, imagino” , disse Aguirre. “Este ídolo foi entalhado pelos antigos
minóicos, ou assim Kindermass disse. Ele também disse que eles vestiam colares
como esse.”
Eu
meneei a cabeça. “Pode ser que seja um colar. A erosão me dificulta afirmar.
Mas acho que é uma serpente. Uma serpente agarrando sua cauda com o boca.”
“Ou
engolindo a si mesma”, disse Aguirre.
O
que você acha desse calor? Viella disse para mim. “Me lembra do Vesúvio quando ruge em seu sono.”
Aguirre
a censurou: “Você não ouviu Kindermass Viella? Esta ilha é o resultado de um
vulcão que entrou em erupção há muito tempo. Ele é um primo do Vesúvio.”
Olhei
para trás, para o caminho do qual viemos, para as luzes de Akrotini, na
distante baía. Abraçando a baía estava Santorini, e movendo-se em sua
superfície estavam as sombras das nuvens trazidas pelo vento, e algo mais.
“Aguirre,
Viella. Fiquem quietos”. Meus companheiros se aproximaram de mim.
“Atrás
de nós”, eu disse. “Movimento. Não, já se foi”.
“Não
é nada” , disse Viella. “Apenas sombras”.
“Talvez
não” , disse Aguirre. “Os olhos de Rollo são apurados. Podemos ter mais amigos
do turco atrás de nós. Vamos entrar no refúgio da Medusa e terminar isto
rapidamente”. Ele sorriu. “Mas
primeiro...”
Ele
deixou seus braços caírem pelo lado, ficando imóvel como uma estátua. Em seguida fechou seus olhos e começou a cantar um cantochão monótono: The lady of
Amaranth, the Black Rose.
Ó
Criador, Caim de Nod
Hoje,
a noite vai me trazer mais para perto de ti
Louvado
seja o Amaranto eterno
Cuja
flor negra como a noite nunca desbota ou enfraquece
Sempre
poderei beber em seu banquete sombrio
Ele
obviamente tinha o direito de cantar a música. Era sua vez afinal. Eu havia
devorado nossa última vítima, o Toreador que batizamos de Duque magricela.
Antes disso foi Viella que se banqueteou no sangue do Assamita turco Ulic, que
tarde demais tentou se matar para impedí-la.
Agora
era a vez de Aguirre. Era com isso que havíamos concordado.
Achei
ter ouvido Viella falar. Me virei para ela e a vi olhando fixamente para o
ídolo. Seus lábios se moveram. Mas ela fez muito pouco ruído para que eu
pudesse ouvir o que dizia.
“Medusa,
você é minha” , ela estava sussurrando. Minha, minha , minha...
*****************************
Quando
Aguirre e eu estávamos em Paris, logo após Kindermass nos ter dito onde
encontrar A Medusa – havíamos nos alimentado de duas pessoas da cidade, agora
completamente sem sangue...
“Então
Viella conhece a setita” , eu disse . “De onde, eu me pergunto”.
“Talvez
a Medusa seja a senhora de Viella”
“Então
por que ela concordaria a nos ajudar a devorá-la?”
“Acho
que nossa pequena setita se sente abandonada” – Risos
“Isso
não faz sentido para mim Aguirre. O Amaranto não é cura para rejeição.”
“Mas
serve perfeitamente como vingança, não?”
Meneei
minha cabeça “Não entendo Viella e nem o seu clan”
Risadas
de Aguirre “Eles são de fato estranhos. Imagine, um ato de bondade sendo
considerado um crime! Como eles podem não percebem que o único crime real é a
fraqueza?”
“Lembre-se
que eles desejam criar mais corrupção. Esta deve ser a razão.”
A
voz de Aguirre zombeteira: “Mais corrupção? Como se isso fosse possível nesse
mundo”.
“Tive
que concordar com ele. “Tem razão. Os setitas colecionam pedrinhas sobre uma
montanha”
“E
então querem enaltecimento por suas grandes criações! Bando de imbecis.”
O
silêncio seguinte foi quebrado pelo som do arranhar de ratos nas trevas.
Aguirre,
com uma risada tomando conta de sua voz: “Você sabe o que Viella é?”
Eu
já podia imaginar o que ele ia dizer.
“Uma
santa”, ele disse. “Nossa pequena setita é uma santa da corrupção! Tão
dedicada! Consegue imaginá-la, comparecendo a massas de cobras no seu templo de
cobra, orando a seu pai cobra para perdoá-la por seu pequenos pecados de cobra!
Mea culpa, mea culpa, mea máxima culpa....hoje eu dei uma pão a um mendigo.”
O
sangue de minha última vítima junto com o sangue do Duque estava me fazendo
sentir bêbado. “As vezes eu acho que dentro de cada setita há um cristão
esperando para desabrochar.”
“Eu
te digo, Rollo. Que o filho do carpinteiro contribuiu mais para a corrupção do
mundo do que todos os setitas que já viveram. Apenas o imagine pendurado lá, e
vermes saindo de seus ferimentos. De fato um odor de santidade.”
Eu
franzi as sobrancelhas. “Odin também ficou pendurado, Aguirre.”
“Ah
mas Ele não subiu aos céus fedendo, não é?”
Ratos
estavam subindo em meus pés. Sons de algo sendo roído.
A
voz de Aguirre imersa em zombaria: “Acabei de pensar em algo, Rollo. Se é
verdade que dentro de cada setita há um cristão esperando para desabrochar,
então dentro de cada cristão deve haver...”
Dei
um sorriso forçado. “Um Seguidor de Set esperando para desabrochar”
“Então
os setitas estão certos! Ainda há os que precisam ser corrompidos! De fato há
trabalho para eles.”
Nossa
zombaria não tinha limites.
*********************************
Nós
viajamos para Santorini separadamente. Viella normalmente viajava com Aguirre,
mas insistia desta vez em ir para o sul e para o leste sozinha. Depois de
diversas semanas, finalmente encontrei Aguirre na taverna da cidade de
Akrotini, não muito distante do refúgio da Medusa. Três noites antes em
Thessalônica, encontrei pela primeira vez o Assamita que me persegue, buscando
vingança relativa a morte de Ulic, o turco. Achei ter me evadido de sua
perseguição sem muita dificuldade. Poucas noites depois eu estava na taverna,
esperando Aguirre e Viella.
Aguirre
entrou primeiro, parecia estar nervoso. Disse ainda antes de se sentar: “Ela vai me deixar”.
Eu
já havia ouvido toda esta história antes. “Não, ela nunca irá te deixar. Ela te
ama”
Aguirre
não estava prestando atenção. “Pois eu te digo que ela já me deixou. Sinto em
meu coração. Encontraremos Medusa apenas para constatar que Viella chegou antes
de nós e realizou o rito do amaranto. E quando eu vir que ela me traiu, não
haverá nada para mim a não ser cumprimentar o sol.”
Isto
me fez rir. “Aguirre nunca cumprimentaria o sol. Ele é um assassino, um
diablerista, um devorador de almas. O sol recusaria sua oferenda e
desapareceria do céu. Em seguida surgiria uma noite eterna.”
Isto
o deixou orgulhoso. “Você acha?” Ele perguntou com os olhos brilhando. “Isso
seria maravilhoso! Noite eterna. Nunca precisaríamos dormir! Viella e eu
poderíamos...”
Sua
voz silenciou, ele deu um sorriso
forçado e estava visivelmente sem graça.
“Viu?”,
eu disse. “Eu te disse que ela nunca te deixaria, e agora você está concordando
comigo.”
Mas
Aguirre apenas balançou a cabeça. Eu não o havia convencido nem um pouco. Mas
podia ver que ele agora estava refletindo, sua choradeira interrompida pela
idéia agradável de um sol que nunca reaparece.
“Trevas
para sempre” , ele disse, com os olhos bem abertos. “Trevas sem fim!”
Ele
forçou um sorriso novamente, e me deu um tapinha no ombro.
“Bem...”
, ele disse. “Algo que vale a pena desejar, não?”
Aguirre
e eu nos apressamos, procurando a abertura da caverna que nos levaria ao
subsolo. Viella estava em silêncio, observando próximo ao ídolo. Sua face oval
branca iluminada pela luz cinzenta.
Eu
senti uma repentina pressão no ar, e com ela um som que parecia vibrar bem
atrás de meus olhos. Permaneceu por um momento e depois desapareceu.
Viella
quebrou o silêncio. “O ídolo não está tão bem ancorado como parece.”
Ela
empurrou a mulher-serpente com uma única mão. Para minha surpresa a estátua se
moveu um pouco.
Aguirre
e eu nos aproximamos rapidamente. Nos apoiamos nossos ombros no dorso branco e
liso da mulher-serpente e empurramos. Ela tombou facilmente tal como uma árvore
que estivesse com as raízes podres. Vi que a base do ídolo havia afundado
apenas um palmo no solo.
Diante
de nós, revelado pela queda da mulher-serpente, um buraco sombrio surgiu. Não
era tão amplo como a base do ídolo, mas ainda grande o bastante para que mesmo
um homem obeso o pudessee transpassar. Vapores surgiram. Tive que desviar
meus olhos.
“Depois
de você” , disse para Aguirre.
Ele
ajoelhou próximo ao buraco, virou para mim e sorriu. Levantou a mão e, para
minha surpresa, se inclinou sobre ele. “Em nome das Trevas e da Sombra, e da
noite eterna. Amém”.
Se
inclinou mais ainda, e ainda sorrindo se lançou na escuridão.
“Seu
tolo” , disse Viella.
“Tem
razão” , eu disse. “Nós deveríamos nos preocupar mais com eventuais armadilhas”
“Sim”,
disse Viella. “Ele deveria”.
Esperamos
uns momentos, e então da cavidade surgiu a voz jovial de Aguirre.
“Venham”
, ele disse. “Está tudo bem. Desçam. É uma queda curta.”
Coloquei
Viella em meus ombros. Olhei para seu rosto e vi seus olhos já brilhando em
vermelho tom de sangue, para poder enxergar o ambiente logo abaixo. Eu sabia que
meus olhos haveriam de ficar no mesmo tom que os dela.
Novamente
senti uma pressão no ar, o mesmo som estranho. E novamente ele sumiu tão logo
comecei a tentar encontrá-lo.
“Estou
esperando”, disse Viella.
Dei
um passo adiante e para dentro das trevas. Houve um impacto quando meu pé
atingiu a superfície de uma rocha plana. Aguirre
tinha razão. Não era uma queda grande.
Me
preparei para descer Viella, mas ela estava impaciente, se debatendo para sair
de meus braços como um gato arisco, ou uma criança agitada.
Olhei
ao redor. Estávamos numa câmara cujo teto era baixo e irregular. As paredes que
nos circundavam eram de pedra de cor vermelho-escuro – e haviam duas grandes
aberturas que ficavam lado a lado. Um estreito feixe de luz lunar descia da
abertura acima, cortando as trevas como uma lâmina afiada. O ar estava quente e
sulfuroso.
A
câmara estava vazia, exceto por Viella, por mim e por uma massa negra junto a
parede, impenetrável mesmo ao brilho de meus olhos vermelhos. Era Aguirre, em
sua forma de caça.
“Uma
voz na escuridão: “Bem vindos ao inferno”
“Guie
o caminho, mestre das trevas” , eu disse.
Lá.
Algo. Uma palavra que não conseguia definir.
“É
estranho”, disse Aguirre. “Por um momento pude sentir Medusa me chamando.
Consegue entender isso? A tola me chama para ir até ela!
“Não”
, disse Viella com a voz tremendo e
ansiosa. “Você está errado, Aguirre”
“Como
assim?”
“Ela
não chama por você, Lasombra. Chama por mim.”
“Do
que você está falando?”
Mas
não houve tempo para Viella responder, supondo que ela quisesse fazê-lo.
Simplesmente não houve tempo.
A
luz da lua que iluminava a câmara desapareceu, bloqueada por algo na abertura. Acima, ecoaram vozes, ríspidas e guturais. Vozes sarracenas.
“Ulic!”
, Eles urravam... “Os vingadores de Ulic chegaram”.
E
de fato, eram quem alegavam ser.
*************************************
Minha
visão estava embaçada. Meus punhos golpeavam para frente e pude senti algo
cair. Minhas mãos ficaram quentes e molhadas.
Golpes
de facas cruzaram o ar. Dor, queimando em meu estômago, e em minhas costas.
Gritos
de triunfo. Girei o corpo por causa da surpresa, quase caí.
E
então o silêncio. Quietude. Minhas botas se arrastavam pelo chão da caverna. Peguei minha adaga.
Subitamente
havia um Assamita na minha frente com uma faca que fazia seu arco até meu
pescoço. Saltei para trás, na direção de golpes que me chicoteavam por trás.
Fui erguido do chão, e o chão subitamente começou a girar, e meu rosto começou a
ser esmagado contra ele.
Uma
bota pressionava meu rosto, me prendendo no chão.
Algo
surgiu no canto de minha visão periférica. Algo pequeno, uma forma
feminina...que foi em direção de um dos túneis. Uma mão em meus cabelos puxou
novamente minha cabeça para cima.
Alguém
gritou um nome – “Viella!” Era a minha voz.
E
do túnel, um lamento ecoava, uma única
palavra, a palavra que pairava no ar anteriormente, evadindo-se da minha
compreensão.
Minha,
minha, minha....
“Viella”.
Era a minha voz novamente.
Uma
voz baixa e sarracena: “Sua amiga o abandonou, gangrel. Nós estamos sozinhos
agora.”
Mais
silêncio. Minha cabeça foi fortemente puxada para a esquerda. Vi um corpo
grande, de pele escura, esticado no chão, cujo crânio com turbante havia
entrado em colapso, do qual saíam sangue e miolos.
“Você
matou Faisal”, disse o Assamita. “Por isso e por outros crimes, você e seus
amigos manafiqun irão sofrer
imensamente.”
“Viella”,
eu chamei.
“Já
te disse. A infiél fugiu para os túneis. Não adianta chamá-la. Sabemos que foi
ela quem realizou o amaranto em nosso mestre. Nós a encontraremos.”
Atrás
do corpo do Assamita morto havia uma sombra imóvel na parede.
“Aguirre!
Me ajude!” Gritei por dentro.
A
sombra começou a descer lentamente para a mesma abertura pela qual Viella havia
entrado. O Assamita ocupado comigo me levantou pela cabeça e então a bateu
contra o solo. Uma, duas vezes, três vezes.
Senti o gosto de sangue.
“Aguirre!”
A
sombra na parede se fundiu com a escuridão do túnel. Havia desaparecido.
Eles
me empurraram ainda mais para dentro da escuridão. Eu não resisti. Atrás de mim
o outro assassino me empurrou para frente com a ponta de sua adaga. O corpo do
assamita, aquele que consegui matar, foi abandonado na câmara atrás de nós.
Nós
paramos num determinado ponto. Agora uma pressão familiar vibrava no ar. O líder
posicionou sua cabeça como se estivesse tentando ouvir algo. Vi seus olhos
ficarem vazios, eu o vi ficar boquiaberto.
Ele
levantou a cabeça e falou com uma voz pesada e ininteligível.
“Sim”
, ele disse. A tensão no ar diminuiu, e continuamos a andar.
Senti
que as coisas estavam começando a fazer terrível sentido. Os Assamitas nos
atacaram abertamente, coisa que nunca fazem. Por que agiam assim? E por que
atacaram apenas a mim e não a Viella?
Olhei
de relance para o líder. Agora ele andava lenta e desajeitadamente, sem o devido
controle dos movimentos. Ele se virou e olhou para mim. Sua face estava tão
viva e consciente como uma pedra. Seus olhos estavam completamente vazios.
Paramos
mais uma vez. A sensação de tensão retornou. O ar parecia cheio de sussurros,
sibilando na fronteira da compreensão. Mais uma vez o líder posicionou sua cabeça. Ele parecia tonto, quase
inconsciente. Suas pernas oscilaram, e ele disse uma única palavra. “Sim”.
Agora
entendi o que estava acontecendo, porque os assamitas estavam se comportando de
forma tão estranha. Mas não via como tal compreensão pudesse me ajudar em alguma
coisa.
Nós
caminhamos, e depois de longos minutos, entramos numa câmara idêntica a
primeira.
Ela
estava lá, e eu a vi: Esperando, como sabia que estaria. Medusa.
Medusa
era pequena, magra, e estava nua. Seus cabelos eram tão negros que quase chegavam
ao tom azulado, presos em tranças que se enroscavam como num abraço serpentino.
Ela sentou, complacente e sorrindo, sobre uma pequena elevação de pedra. Uma
rainha reinando nas trevas, emitindo julgamentos de seu trono gélido e rígido.
A
única luz dentro da câmara vinha de sua pele de tom de mármore branco, que
brilhava como se possuísse luminescência própria. Eu não consegui distinguir a
cor de seus olhos. Seus lábios eram fartos e muito rubros. Atrás de seu trono
só havia escuridão.
Ela
acenou positivamente com a cabeça para o Assamita. “Obrigada, Khalid, por seu
...auxílio. Você respondeu ao meu
chamado com rapidez admirável”. Sua voz era baixa e suave, com um sotaque
estranho.
O
Assamita não disse nada. Ele parecia uma estátua. Algo apareceu em minha
visão periférica. Era uma sombra, movendo-se lentamente pelo chão nas
proximidades da câmara. Nem a Medua nem os Assamitas pareciam ter percebido.
A
sombra no chão entrou na grande escuridão atrás do trono da Medusa, se tornando
indistinguível da mesma.
Medusa
veio em minha direção. Seus quadris femininos se moviam com uma erotismo
casual. Atrás dela, despojado de sua
luz, seu trono caiu ainda mais na escuridão.
Khalid
se moveu para a direita e o outro assamita para minha esquerda.
Medusa
ficou diante de mim. Com sua mão pequena tocou meu queixo.
“Creio
que vou devorá-lo, meu precioso homem-fera loiro.”
Franzi
as sobrancelhas. Suas palavras me congelaram, mas não por causa da ameaça
contida nelas. Tentei lembrar a razão. Mas a pressão retornou, e a questão de
repente se tornou completamente irrelevante. Eu a abandonei, e a pressão
aliviou.
Olhei
sobre a cabeça da Medusa, evitando olhar em seus olhos. Atrás dela, seu trono
agora estava completamente invisível, coberto por uma massa impenetrável de
escuridão. Precisei conter um súbito desejo de gargalhar.
As
sombras atrás da Medusa começara a se expandir como tinta na água. Um longo e
fino tentáculo quase tocou nos pés de meu atormentador.
Senti
um puxão em meu queixo: Os dedos gélidos da Medusa. Precisava mantê-la
distraída para a ameaça atrás de si.
Olhei então para seu rosto.
Vi
seus olhos verdes brilhantes, que de repente se tornaram azuis.
Foi
então que entendi completamente. Agora não mais tinha vontade de rir.
“Você
não é – Foi tudo que tive tempo de dizer. E então...
...Aguirre
explodiu das trevas.!
O
ataque de Aguirre veio rápido e acertou a minha esquerda.
Senti,
ao invés de ouvir, a chicoteada de sua lâmina de sombras quando esta acertou o
Assamita com toda força.
Em
minha frente, a setita se virou, e passou a
ser perseguida por sombras.
Um
momento depois: O impacto de um corpo pesado atingindo o chão.
Agora
eu estava livre, sozinho com o Assamita de nome Khalid. Eu sabia que não tinha
muito tempo para evitar um desastre de acontecer.
Minhas
mãos tremeram em agonia. A pele queimou e se abriu. Meus dedos se distenderam,
aumentando em tamanho, crescendo em garras de duas polegadas de comprimento,
afiadas como facas.
A
dor diminuiu. Agora minhas mãos podiam matar mais eficientemente. Eu circundei
meu oponente.
“Khalid”,
eu disse. “Nós não devemos lutar. Tenho uma razão para achar que todos nós
fomos controlados por um poder adormecido que segue seus próprios propósitos.
Todos nós, inclusive você! Você e seus companheiros estão aqui apenas porque
ela os convocou, os fez vir.”
Khalid
gargalhou friamente. Ele parecia estar no controle de si memso agora, frio e
autoconfiante.
“Não
me importo” , ele disse. “Você e seus amigos fizeram de meu senhor shahid um mártir. Suas mortes são uma questão de vingança que deve se
completar”.
“Khalid,
você precisa escutar! A mulher que vimos não era ...”
Ele
se lançou em mim, urrando com uma faca em sua mão. Eu me esquivei e o golpeei
com minhas garras, acertando seu abdômem.
Então
ele caiu, rolando até a base da câmara da caverna. Ele caiu prostrado,
agarrou-se em seus pés, virou-se vagarosamente para olhar para mim.
Minhas
garras penetraram fundo. Khalid olhou para seu estômago se abrindo e para o
sangue de seu coração saindo, fluindo até chegar ao chão. Sua face se retorceu
em agonia e surpresa.
Seu
olhar em minha direção era feroz de tanto ódio.
“Outros
virão”, ele disse. “Outros sempre virão”.
Eu
não respondi.
Lentamente,
quase que de modo reverenciador, o assamita se ajoelhou diante de mim. Ele
inclinou a cabeça e olhou para mim. Seus olhos, como carvão incandescente em
sua face de tom negra, tremeluziram
fracamente e se fecharam.
E
então finalmente ele morreu.
Eu
não tinha tempo a perder. Corri, voltando pelos túneis para o lugar onde
havia lutado contra os Assamitas pela 1ª vez. O lugar estava vazio.
Xinguei
e corri para o outro túnel. Haviam trevas cobrindo o lugar. Continuei correndo,
Um assobio enlouquecedor se insinuou, surgindo atrás de meus olhos, ficando
insuportavelmente intenso. Eu tropecei, caí e fiquei confuso.
Mais
alguns minutos perdidos. Sacodi a cabeça, e o som sibilante reptiliano saiu da
minha mente. Então ouvi. Logo em frente - gastei sangue – corri o máximo que
pude.
Corri
para a outra câmara, e parei de súbito. Meus olhos identificaram duas formas no
chão, num abraço terrível. Uma fêmea de costas, nua, branca, com os braços
inclinados em postura de rendição. Arqueada sobre ela estava uma nuvem negra.
E
da nuvem vinha sons de alguém se alimentando.
“Aguirre!”
Eu gritei. Mas era tarde demais. Logo depois que eu cheguei, o rito do amaranto
se completou.
O
corpo, agora sem sangue, começou a murchar e se desfazer, entrando em colapso.
Em poucos segundos o corpo ficou tal como uma múmia, em seguida como um esqueleto, e
então se reduziu a cinzas.
Mas
não antes de eu ter tempo de ver o disfarce que escondia suas verdadeiras
características desaparecer, revelando o rosto e corpo de Viella.
Seu
banquete de almas estava completo, Aguirre emergiu das sombras, se inclinou para
longe dos restos mortais em cinzas.
“Eu
a devorei” , ele disse.
“Era
Viella Aguirre, não era a Medusa”.
Os
olhos negros e fundos de Aguirre se arregalaram. “O quê? Do que você está
falando, Rollo?”.
“Lá
na sala do trono, olhei para os olhos de Medusa. Eles eram verdes, e depois
ficaram azuis.”
“Viella...
nunca conseguiu disfarçar os olhos direito, lembra?”
Aguirre
abriu a boca, e a fechou logo em seguida. Eu esperei, até ter certeza que ele
estava ouvindo. Então disse:
“Viella
e os Assamitas estavam sob controle da Medusa. Os Assamitas foram convocados
por ela. Foi assim que nos encontraram tão rápido. Quanto a Viella, não sei
quando Medusa tomou o controle de sua mente. Mas tomou. Provavelmente foi lá em
cima. Agora me ocorre como foi estranho que Viella soubesse sobre a abertura
debaixo do ídolo.”
“Depois
que entramos e os Assamitas chegaram, Medusa fez Viella nos abandonar. Ela
precisava deixar Viella isolada. Então Medusa forçou que se disfarçasse,
fingindo ser Medusa”.
Fiz
uma pausa, para reunir as lembranças.
“Sim”
, eu disse. Os Assamitas pararam duas vezes quando estavam falando comigo e com
ela – com Viella aliás. Deve ter sido Medusa os conduzindo a esperar enquanto
Viella terminava a transformação. O timming era importante. Tenho uma pergunta
para você Aguirre. Onde você estava quando me deixou com os Assamitas?”
“Persegui
Viella. Então fiquei confuso. Fiquei perdido por um tempo. Então ouvi você e os
assassinos, e os segui até a câmara.”
Acenei com a cabeça. Sabia tudo a
respeito desta confusão. “Medusa foi quem te confundiu, Aguirre. E o
estratagema dela funcionou. Quando encontramos Viella, ela estava disfarçada.
Com isso achamos que fosse Medusa. Até o momento em que olhei em seus olhos.”
“Eu
não vi seus olhos” , Aguirre lamentou. “Estava atrás dela o tempo todo.”
Cerrei
meus punhos. O plano de Medusa foi de fato astuto. Percebi que não foi apenas
Viella e os Assamitas que foram feitos de marionetes pela adormecida. Me
perguntava se o controle sobre nós ainda estava ativo, mas
rejeitei esta especulação inútil.
Aguirre
colocou as mãos na cabeça e começou a surtar. “Então onde está... Medusa,
Rollo? Onde ela se esconde?”
“Mais
fundo na terra, provavelmente. Dormindo, mas ainda assim desperta o bastante
para jogar seu joguinho conosco. Isso importa Aguirre? Nós nunca tivemos chance,
nunca.”
Aguirre
fez apenas uma feição de lamento.
“Deve
ter sido do agrado da Medusa”, eu disse “Nos enganar até realizarmos o Amaranto
em um dos nossos. E se Medusa for a senhora de Viella, então o embuste deve ter
sido ainda mais doce. Imagino que nunca descobriremos o quanto Viella odiava
Medusa”.
A
voz de Aguirre alcançou um tom apavorado. Ele começou a arranhar seu rosto com
as unhas.
“Rollo!”,
ele exclamou. “Eu posso sentí-la! Posso sentir Viella dentro de mim! Ela é como
uma cobra serpenteando em minha mente! Meu deus! Meu deus! Kindermass estava
certo! Posso sentí-la em minha mente!”
Fechei
meus olhos. “Não há mais nada aqui para nós. Você vem comigo, Aguirre?”
Aguirre
apenas continuou a se lamentar e se balançar.
“Uma
cobra serpenteando” ele dizia assustado “Uma cobra serpenteando em minha
mente”.
Virei-me
para trás, deixei Aguirre lá. Saí da câmara onde ocorreu o amaranto e fiz o
caminho de volta até a abertura que nos levou ao subsolo.
Por
um momento fiquei diretamente debaixo da abertura, olhando para a lua. Atrás de
mim, das profundezas das trevas, vinha o som dos gritos e urros de Aguirre.
Subi
e saí da câmara, emergindo no frio ar noturno. A tempestade de inverno havia
acabado, e o vento havia desaparecido. O céu estava escuro e repleto por
estrelas.
Desci
da elevação, mudei para forma de lobo e atravessei a ilha tão rápido quanto
pude. Não olhei novamente para a caverna, nem para o ídolo.
Eventualmente,
alguns meses depois, retornei a Paris, onde relatei a Kindermass tudo o que
havia acontecido. Ele apenas acenou com a cabeça.
Obviamente,
nunca mais vi Viella. Ela me deixou para sempre, foi extraída da minha vida
completa e irrevogavelmente. Para ela e para mim, não haveria reencontro. Ela
se foi para todo o sempre.
Quanto
a Aguirre, não sei se Medusa o pegou ou se o deixou ir. E não estava certo de
que me importo.
As
vezes acho que tenho ciúmes de Aguirre. Ele estava sempre com medo de que
Viella o abandonasse. Mas ele não tem com o que se preocupar, não mais.
Agora
ela nunca o abandonará.
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