domingo, 17 de janeiro de 2016

Texto Inicial - Livro Elysium

Porque textos da segunda edição como este são foda demais!!
   
 ...e assim como as noites se alongam em semanas, e as semanas em anos, e os anos em décadas, e as décadas em séculos, uma amargura cresce lentamente em minha alma. Uma amargura tão vasta em tamanho, movendo-se com a lentidão de uma geleira que nem mesmo consigo acompanhar sua progressão em tempo real. Apenas em momentos de reflexão sobre meu passado posso ver o dano já feito. A passagem da geleira monstruosa, esvaziou o meu outrora espírito indomável. Apenas em momentos de contemplação a respeito de meu futuro consigo ver os fragmentos remanescentes da jóia tremeluzente que outrora foi a minha alma. Eu vejo o pouco de humanidade que restou em mim, e aguardo pelo dia em que ela também será destruída pelo moinho da passagem do tempo.
     Eu não pedi por esta existência sem fim. Não conheço ninguém que a tenha pedido, exceto o príncipe romeno das fábulas, Vlad Filho do Dragão, Lorde dos Inconnu. Não pedi por uma existência que é uma zombaria de tudo que amei e de tudo que sonhei atingir. Não pedi para ver tudo que amava perecer nas brasas ardentes da inevitabilidade. Não pedi para ver as marés do tempo lavarem até mesmo as maiores conquistas de meu tempo. Não pedi para ver meu mundo afundado na fornalha das mudanças escaldantes, no qual tudo que conheci foi reduzido a nada e substituído com pessoas tão estranhas, aparelhos tão bizarros e costumes tão esquisitos que preciso sempre me esforçar para compreender as excêntricas novas maneiras, miraculosas máquinas modernas e incompreensíveis novos modos de linguagem. Mal consigo acreditar que este é o mesmo planeta no qual nasci. Não posso ir para os lugares que cresci, visitar meus antigos amigos ou buscar a afeição de meus antigos amores. Eles não existem mais. Não posso mais andar por regiões rurais por dias sem ver uma única alma. Eu não pedi por tudo isto, contudo, aqui estou. Não pedi por uma eternidade de uma crescente decadência e decrescente alegria. Mas aqui estou, um ancião perplexo, cansado e vazio, perguntando-se para onde este mundo foi, para onde seus amores foram, para onde sua vida foi.
     Os desafios diante de mim parecem intransponíveis. Os recursos sob meu comando parecem limitados. A esperança e zelo que ardiam em minha juventude são como cinzas frias em minha idade, e agora temo este tipo de chama. Estou aprisionado num papel reduzido, no qual tenho poucas escolhas. Portanto, dentro do confinamento de minha situação, faço o que bem quero, e conheço poucos de meus inimigos e críticos que fariam, ou que seriam capazes de fazer, outra coisa caso estivessem em meu lugar. Contudo, a cada nova atitude, a cada nova punição a um anarquista, a cada nova repelida das incursões do sabá, a cada nova depredação da sociedade mortal e sua vitae, eu morro uma iota. Mas todas as outras opções – o comprometimento da Camarilla, a quebra da Máscara – são um convite ao caos. A única outra escolha é a morte em etapas, a morte da vida que não quis, mas que também não quero perder.
     Conforme meu sangue antigo envelhece, menos e menos se infla de emoção. Eu poderia administrar minhas propriedades tão friamente como um autômato. Onde antes o menor  desprezo percebido inflamaria minhas paixões, agora somente as ofensas mais sérias provocam alguma reação; eu preciso me forçar para reagir a qualquer coisa menor do que isto. Com frequência sinto a indignação do orgulho ferido, mas raramente ira em relação a injustiças cometidas. Embora minha mente frequentemente esteja nublada pela devastação da maldição de Caim, posso ver claramente uma parte íntima de meu ser: meu sangue coagulado só se comove quando confrontado por um desafio direto a minha vaidade. Incursões em minhas propriedades não me provocam do mesmo modo que um anarquista insolente. A perda de uma dúzia de carniçais para a selvageria dos lupinos me causa a mesma emoção de um escrivão contabilizando seus livros; substituições precisam ser feitas. Mas se um carniçal questiona minhas ordens, sinto a fúria de um leão. Em momentos de reflexão posterior, saboreio os agradáveis efeitos de meu ultraje. E se humilho completamente um oponente de valor de forma que isso não resulte num ciclo destrutivo de represálias, e se destaco-me em glória diante da corte, então – e só então sinto êxtase. A emoção é semelhante aquela da primeira vez em que me saciei com sangue fresco, talvez ainda mais intensa. Embora eu despreze e tenha receio dos intermináveis conflitos de palavras entoadas na corte do príncipe, nos salões do Elíseo e nas ruas da cidade, eu os saboreio com a perversidade conhecida apenas pelos poderosos e amaldiçoados.
     Eu sou solitário, mas sou poderoso. Eu farei tudo que puder para trazer emoção para esta zombaria do que uma vez foi meu perfeito corpo humano, esta carcaça de carne morta, esta infeliz prisão sugadora de sangue. Se for preciso que eu lance uma rajada de palavras danosas de ódio sobre meus inimigos na corte, que assim seja. Se for preciso que eu arbitrariamente esmague as ambições de um anarquista perspicaz e habilidoso, que assim seja. Se for preciso que eu caprichosamente desvie o curso de uma alegre aspiração mortal, que assim seja. Para que assim os anarquistas pensem que eu vivo para tornar suas vidas miseráveis. Certamente ficariam absurdamente surpresos se descobrissem que estão certos!
    O simples fato de escrever estas palavras me estremece de terror, que ao passar deixa-me estranhamente revigorado. Embora nunca viesse a falar com tal dolorosa e perigosa franqueza, me anima vê-la refletida no escurecido espelho de minha alma, e admití-la a mim mesmo a plena luz – luz que toda minha espécie detesta. Se você for bem sucedido em despertar minha ira, terá de me perdoar se não exprimir meu agradecimento secreto enquanto lhe esfolo vivo. E se for bem sucedido em suscitar-me um imenso ÓDIO, saiba, em seus momentos finais de intolerável agonia, que eu o amo com toda minha alma.

- Redondo de Valquez,

Abraçado por Ishaq Ibn Ibrahim,
Que por sua vez fora abraçado por Iontius,
Que por sua vez fora abraçado por Arikel,
Que por sua vez fora abraçado por Enosh,
Que por sua vez fora abraçado por Caim.

Traduzido por Acodesh

Fonte:  Livro Elysium, págs 6 e 7

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