Quando a porta secreta se fechou
atrás de si, Bogdan percebeu que não poderia seguir em frente. Seu corpo não
mais o obedecia. Viu como seus dedos se contraíam e sentiu gelar o sangue
inerte em suas veias. Passado um instante, Bogdan soube o que era aquela
sensação por mais improvável que pudesse parecer: era terror. Isso não era de
se esperar. Bogdan era tido como alguém que não conhecia o medo, assim era como
o conheciam todos os seus irmãos. Fora ele quem havia assombrado a todos ao
adentrar em uma fogueira para recuperar o elmo de combate de seu senhor. Bogdan
desacatou os Tzimisce quando estes tentaram submetê-lo. Nada do que puderam
fazer a seu corpo conseguira forçá-lo a trair os segredos de seus irmãos. Ele
era Bogdan, o indomável. Era o único a quem se poderia confiar para em caso de
captura, não revelar absolutamente nada. Fora ele quem se manteve de pé sozinho
na neve, diante do príncipe lupino para exigir-lhe seu amuleto. Bogdan levantou
a bolsa de couro contendo o amuleto capaz de neutralizar barreiras e abrir
fechaduras. Eram os malditos Tremere que deveriam sentir medo – dele. Bogdan
esperou, e seu sangue se descongelou. Tentou mover os dedos e descobriu que era
possível. Fechou os olhos por um instante, e depois entrou nas profundezas das
câmaras secretas.
Se Colga se
encontrava em algum canto daquele edifício frio sacudido por ventos, seria ali,
nas câmaras secretas aonde somente os Cainitas Tremere se aventuravam. Já há
meses ninguém recebia notícias de Colga. Sem dúvida havia sido descoberto pelo
clã ao qual fingiu ser leal por tanto tempo. Bogdan não gostava de muitos
Cainitas, inclusive alguns de seus companheiros de clã, porém sentia certa
afeição por Colga, nobre e amante da natureza.
Bogdan passou
muitas semanas dentro de Ceoris, disfarçado de criado de um dos magos mortais.
Como era necessário, procurava não chamar a atenção. Havia prestado atenção nas
fofocas dos servos. Ele se insinuou para os aprendizes mortais e evitou os
cainitas entre eles. Seu suposto senhor não sabia nada do mundo dos Cainitas, o
que para Bogdan parecia divertido uma vez que passou séculos ouvindo falar do grande
poder daqueles magos, que podiam fazer com que os bosques caminhassem e que
castelos tombassem com um simples gesto. Porém eram incapazes de ver que
Usurpadores caminhavam entre eles.
Um tinido
ecoou pelas escadas a sua frente, indo em sua direção. Bogdan se abaixou e depois
se encolheu contra a parede de pedra, sentindo a umidade através de sua túnica
de lã. Se alguém estivesse subindo pelas escadas, ele não teria nenhuma
esperança de escapar.
Permaneceu
imóvel por um tempo, porém não mais escutou ruídos. Apressou-se a descer o
resto dos degraus até chegar ao corredor na parte de baixo. Não lhe pareceu
mais grandioso do que os anteriores da parte de cima. Várias portas o
aguardavam. Ainda que já estivesse familiarizado com as áreas públicas da
capela, nunca havia cruzado a porta secreta e desconhecia por completo a
extensão daquelas câmaras ocultas. Não havia outra opção a não ser abrir as
portas aleatoriamente até encontrar as celas onde os prisioneiros eram
mantidos. Tinham que estar nas partes secretas, já que os magos mortais juravam
que Ceoris não mantinha nenhum prisioneiro.
Bogdan
voltou a se arrepiar ao escutar um ruído procedente da porta mais próxima. A
porta era robusta e reforçada com ferro. Ele estava confiante de que poderia
cuidadosamente percorrer toda a extensão do corredor sem alarmar quem quer que
estivesse fazendo os ruídos do lado de dentro da sala. Não acreditava que as
celas estivessem entre as primeiras salas que um intruso encontraria. Caminhou
com cuidado pelo chão de pedra, sem fazer um único barulho, até finalmente
dobrar numa curva e se perceber num segundo corredor, também com portas de
metal enfileiradas. Agora sem escutar nenhum som, tomou coragem para tentar
abrir uma das portas. Todos os seus esforços teriam sido em vão se aquelas
portas estivessem bem trancadas. Mas a porta emitiu um rangido suave quando a
empurrou com o ombro, e se abriu. Levantou seu lampião para iluminar o quarto
escuro. Dentro havia gárgulas. Ele se preparou para um intenso e terrível
combate.
Mas
– exalou forçadamente um curto suspiro de alívio, o primeiro em décadas – as
gárgulas permaneceram imóveis. Estavam mortas, empalhadas e montadas como
troféus de um caçador. Cada uma delas exibia uma desconcertante malformação que
a distinguia dos espécimes animados que Bogdan havia visto nas guaritas da
parte exterior da capela. Foi então que Bogdan escutou o som de arranhões e de
algo se movendo em outra parte da sala. Junto a duas paredes haviam jaulas
agrupadas, a maioria muito pequena para abrigar sequer uma lebre. Bogdan deu
uma espiada numa das jaulas e descobriu feras compostas de pedaços que não as
pertenciam. Um rato com as transparentes asas de uma libélula. Um retorcido ser
semelhante a um verme, maior que um gato, e que se impulsionava graças a vários
pares de línguas humanas. Uma pomba cujo peito vertia pus com o lento palpitar
do que só poderia ser as partes íntimas de uma mulher. Bogdan havia visto muitas
das diversas atrocidades cometidas pelos Tzimisce com suas vítimas cujas carnes
foram alteradas, as quais, num primeiro olhar, guardavam certa semelhança com
aquelas criaturas. Mas os seres nas jaulas eram de alguma forma diferentes,
ainda que Bogdan não encontrasse palavras para expressar a razão. Eles eram
retalhos mal costurados, frutos de uma loucura mais fria do que a dos Tzimisce.
Colga saberia a explicação. Quando o encontrasse, tudo se esclareceria. Ele
tinha que sair dali e procurar Colga, já que não acreditava vir a encontrar as
chaves de nenhuma cela naquele local, entretanto não conseguia resistir em
espiar as jaulas. Ele disse a si mesmo que seus irmãos gostariam de conhecer
aos segredos daquela câmara.
Uma
das jaulas estava coberta por um pano sujo de ferrugem, Bogdan puxou-o, e logo
depois se lamentou por sua falta de cautela. A besta do interior era formada
pelas traseiras de dois lobos, onde cada par de patas juntava-se no meio para compor
um ser sem cabeça. Dúzias de espinhos afiados apareceram de seu torso rosado.
Quando estes espinhos se abriram, Bogdan viu que na realidade eram os bicos de
incontáveis aves. Os pássaros começaram a gorjear. Bogdan sentiu o impulso de
fechar a porta e assegurar-se de que ninguém viesse a ouvir o estrondo dos
chiados, porém havia algo naquele ruído que o manteve paralisado no mesmo
lugar. Em meio aquela ensurdecedora e cacofônica canção, não tardou para que
conseguisse distinguir palavras. Palavras que falavam em seu dialeto natal.
Então escutou os nomes de sua mãe, seu pai e de seus filhos mortos há muito
tempo. Não pôde conter os calafrios. Em seguida as palavras mudaram e passaram
a enumerar todas as ocasiões em
que Bogdan havia sido ameaçado, espancado ou torturado.
Aquelas vozes deram nome ao terror que dizia a si próprio jamais ter sentido.
Demonstravam que sua impavidez era mentira, enumeravam a gritos os horrores
mais profundos que enterrou dentro de si. Os gritos da criatura puxaram aqueles
medos de seu interior e o envolveram, para que a besta o dominasse.
* * *
Bogdan acordou e não estranhou
descobrir estar atado a um banco numa cela mal iluminada. Tinha os braços
presos nas costas e suas pernas amarradas nas da cadeira. Ele testou a força
dos laços quando foi zombeteiramente repreendido pela insinuante voz de uma
mulher que adentrava a câmara silenciosamente.
A desconhecida aproximou-se.
Bogdan
viu sua beleza: um rosto de linhas perfeitas, uma pele que absorvia a luz. O
corte de sua túnica imaculada recordava-lhe vagamente o hábito de uma freira. Depositou
sobre ele um olhar fulminante que Bogdan já havia visto antes em outros
captores. Todos acreditavam que com olhares fulminantes e algumas ameaças
eloqüentes poderiam assustá-lo a ponto de trair seus irmãos.
“Eu
sou Mendacamina. Vou descobrir quem o enviou e o porquê.”
A
princípio, todos se mostravam confiantes.
“Não
posso prometer que vai sair daqui com vida” – continuou a mulher – “ambos
sabemos que essa promessa não seria mais do que uma mentira absurda, contudo você
pode evitar passar por dores.”
Bogdan
estava decidido a guardar silêncio. Havia descoberto anteriormente que era a
melhor forma de irritá-los.
“Você
de alguma forma descobriu como proteger sua mente da leitura mental” – gracejou
a mulher. Seus olhos brilhavam com a luz do lampião quando inclinou-se em sua
direção – “Porém sei que você se chama Bogdan, que veio resgatar alguém e que
acredita estar imune aos meus doces cuidados. Mas isso porque você é um homem
sem imaginação. Sua mente não é capaz de conceber as agonias que posso produzir.
O que os Tzimisce fizeram com você - em comparação, não será mais que uma
alfinetada.”
Bogdan
surpreendeu-se com a profundidade com que aquela mulher conseguiu entrar em sua
mente, mas o que ela queria descobrir estava bem protegido, oculto por muitas
camadas de força de vontade e concentração.
Ela
acariciou-lhe o rosto com seus dedos de pele seca. “Você orgulha-se de não
conhecer o medo. Mas o Chitterer
derrubou as muralhas de sua coragem assim como as trombetas hebraicas
derrubaram Jericó.”
Bogdan
decidiu ser conveniente formular algumas perguntas. Mesmo que tivesse falhado em encontrar Colga ,
ao menos poderia compilar informações úteis para levar a seus irmãos, após sua
inevitável fuga. “O que era aquela besta?” ele perguntou.
Mendacamina
esboçou um sorriso e voltou a posição ereta normal “O hobby de uma de minhas
colegas. Seus perpétuos experimentos com a natureza sempre se mostram
interessantes e, em ocasiões, resultam em algo útil. Eu descobri que o Chitterer criado por ela funciona
maravilhosamente para enfraquecer mentes demasiadamente orgulhosas.”
Bogdan
escutou o som de objetos sendo movidos atrás de si. Se esticou para girar a
cabeça e conseguir ver o que era, sem êxito. Pelos sons julgou haver mais 4
pessoas no local. Eles grunhiam como se carregassem um objeto pesado. Logo se
produziu um rangido, algo grande e metálico estava sendo empurrado pelo chão de
pedra da cela.
“Conduziu-me
a ira do sangue, é verdade, porém já não estou em frenesi e, seja qual for o
aparato de tortura que você está preparando, aviso que não conseguirá
obrigar-me a falar.”
Os
criados de Mendacamina manobraram o aparato até o alcance da vista de Bogdan.
Era uma grande caixa, forjada em bronze na qual foram inscritos símbolos de
feitiçaria. Uma roda do tamanho de um escudo sobressaia a alguns centímetros da
caixa. Mendacamina aproximou-se da caixa e dela extraiu um tubo longo, também
de bronze, composto por muitas partes articuladas, ligadas umas as outras.
Bogdan sentiu mãos ásperas segurando seu rosto e girando-lhe o pescoço para o
lado. Escutou um cântico; havia mais pessoas na sala, além do limite do círculo
iluminado pelo lampião. Estavam fazendo magia. Bogdan sentiu algo úmido sendo
aplicado em sua têmpora. Seus olhos lacrimejaram frente a dor que irradiava
daquela área. Bogdan sentiu o cheiro de sua carne derretendo.
“Você
deseja obter informação para levar de volta a seus irmãos. Embora nunca mais
voltará a vê-los, ainda assim serei sua tutora. O tubo que tenho em minhas mãos
é uma Cannula, e isso – “Ela mostra
uma afiada lâmina triangular na extremidade do tubo – chama-se trocar, combinados, permitem-me aspirar
os fluidos de alguém. O dispositivo
maior – ela aponta para a caixa grande – “processa sua mente até que se
transforme num fluido pastoso”. Ela sinaliza com um gesto para que se acendam
mais luminárias, ordem que seus criados imediatamente obedecem. A nova luz
revela uma mesa, sobre ela descansava um objeto redondo, oculto debaixo de um
pano de linho tingido. “Como pode ver, um segundo tubo sai do aparato e vai
alimentar alguém que quero que você conheça, Bodgan.” – Ela retira rapidamente
o pano que cobria o objeto, e uma cabeça de bronze de noventa centímetros é
revelada, dotada de mandíbulas articuladas e olhos móveis de mármore encerrados
em dois orbes de cristal cheios de líquido. O rosto parecia sorrir para Bogdan
– “Esse é Paracelsus. Ele está ansioso para saborear o conteúdo de seu cérebro.
Tal como disse, Bogdan, não posso te obrigar a falar, e é verdade. Mas
Paracelsus falará por você.
E deu um passo para frente, com o
Trocar em mãos, prestes a cravá-lo na
têmpora de Bogdan.
Um comentário:
Tzimeces se sentiram superados
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